MARGARIDA LOURENÇO SOEIRO, nasceu em Lisboa, apesar da sua infância ter sido em Santarém, onde estudou e cantou pela primeira vez fado.
Afirma ter tido a sorte de ser acompanhada pelos melhores músicos deste país, desde muito cedo e privar com muitos dos nomes marcantes na história do fado.
Começou por cantar fados do repertório de Amália Rodrigues, e só mais tarde, descobriu a beleza dos fados e da voz de Maria Teresa de Noronha, de quem tem muita pena de não ter conhecido pessoalmente.
Desde muito nova que aprendeu a ouvir o Fado , a sentir que "tinha alma fadista" e só se afoitou a cantá-lo em público , quando sentiu que para ela o Fado já era " um estado de alma" , pelo que não concorda totalmente com a "máxima" de que fado não se aprende., sente que não é totalmente verdade, nasce-se fadista, é certo, mas o "estado de alma, que se sente fadista" cresce com a vida, ouvindo muito, e só assim se aprende a melhor dizer, e dizer bem, e transmitir a quem nos ouve, o sentimento, a dor, a alegria que o Fado tem.
Gosta do Fado tradicional, admira Amália Rodrigues, Maria Teresa de Noronha, Alfredo Marceneiro, João Ferreira Rosa , Carlos Zel. e muitos outros.
A sua carreira profissional é na área das ciências sociais e humanas. No Fado, que ser sempre amadora.
Em 2011 lança o seu primeiro CD " MOMENTOS, registo em que junta alguns dos fados que canta regularmente, e quatro letras inéditas em músicas de Fado tradicional.
Ainda em 2011 foi convidada pela Presidência da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, para ao lado de Vítor Duarte Marceneiro, homenagear a figura de Alfredo Marceneiro, onde foi muito aplaudida.
Esteve a cantar durante algum tempo na Casa da Mariquinhas em Alcântara, no entanto passou por algumas das casas mais emblemáticas de Lisboa, desde o Senhor Vinho, Embuçado, Os Gordos, Pátio das Cantigas, Tia Ló, Pindéricos, S. Caetano e Nove e Tal, no Guarda-Mor em Alfama etc.
Actualmente é a voz feminina privativa às sextas-feiras no EstaFado.
É Vice-Presidente da Direcção da Associação Cultural de Fado," O Patriarca do Fado", cujo patrono é Alfredo Marceneiro.
Margarida Soeiro
"Quadras para Namorar"
Vou novamente relembrar a minha ida à feira da ladra nesse ano de 1951, com o meu pai antes do inicio da escola, em que para além da compra de uma grafonola, é também a história das minha botas de cano alto à "cow-boy".
Foi num Sábado de Agosto de 1951, que o meu pai me foi buscar a casa dos meus avós para me levar a conhecer a Feira da Ladra. Nessa época meu pai já tinha abraçado a profissão de "Artista de Variedades – Fadista", mas estava no início, o que ainda não lhe dava estabilidade económica. Com o falecimento precoce de minha mãe, passei a viver com os meus avós, na Rua da Páscoa, a Santa Isabel – Campo de Ourique.
Fomos a pé até ao Largo do Rato, descemos a Rua de S. Bento e, quando íamos a meio da Av.ª D. Carlos I, comecei a chorar porque me doíam muito os pés; tinha calçado nessa altura umas botas de carneira com sola de pneu, boas para jogar à bola, mas para caminhadas pareciam ser feitas de chumbo. Meu pai ficou um pouco arreliado, pois estava a fazer planos para irmos até ao Campo de Santa Clara a pé, e logo me disse:
– Lá vamos ter que gastar catorze tostões em dois bilhetes de eléctrico para a Graça.
Carro Elécrico aberto anos 50
Chegámos a Santos e apanhámos o eléctrico, tal como o da foto acima (eléctrico aberto). Lembro-me que enjoei um pouco, pois o meu pai disse-me:
– Eh pá, estás amarelo, não vomites no carro – e passou-me para o topo do banco, onde era totalmente aberto, agarrando-me o braço com força para eu não cair.
Lá chegámos e entrámos para o recinto, pelo lado da Rua da Voz do Operário.
Foto do ambiente da Feira da Ladra, anos 50
Aquilo era um mundo fantástico para mim (tantas coisa giras); algumas eu nem sabia para que serviam, mas meu pai era frequentador e já ia com a ideia fixa do que queria comprar: uma grafonola! Fomos ao poiso do homem que ele sabia ter uma para vender, embora avariada. Na semana anterior já tinha tentado negociar um bom preço, mas não conseguiu. Com a minha presença (talvez para puxar ao sentimento) e batendo no argumento de que a corda estava partida e talvez nunca fosse possível arranjá-la, lá a comprámos por 20$00, incluindo uma caixa de agulhas e um disco de massa da "Voz do Dono" com dois temas de Maria Alice (que mais tarde veio a ser mulher de Valentim de Carvalho).
Tentámos, nos vários comerciantes, arranjar um disco do meu avô para lhe fazer a supresa, mas em vão; os discos de "Marceneiro" ainda eram preciosidades, raras de mais para aparecerem por ali.
Com o meu pai a transportar a grafonola, que depois de fechada parecia uma mala e tinha uma pega, começámos a descer em direcção à Av.ª 24 de Julho, para nos irmos embora. Ao passarmos junto ao gradeamento que dá para o Hospital da Marinha, havia um homem a vender calçado usado, mas com bom aspecto e muito bem engraxado. Os meus olhos fixaram logo uma botas de cano alto (à cow-boy). Pedi ao meu pai para ir ver se eram da minha medida, calcei-as e recordo que estavam um pouco compridas. Mas o homem disse logo que era a minha medida e que tinham solas novas, estavam muito baratas, só 15$00. Ó paizinho, compre, para eu levar para a escola (eu entrava em Outubro desse ano de 1952 para a 1ª Classe, nas Oficinas de S. José, aos Prazeres).
– São caras e o pai só tem... – e levou a mão ao bolso, mostrando 8$60.
O homem, com a sua lábia de vendedor, disse-lhe:
– Estas botas, por 15$00, são um pechincha... Mas como o miúdo está aí tão triste, dê cá isso e leve lá as botas.
Mesmo antes que meu pai dissesse algo, embrulhou-as em papel de jornal, atou-as com uma guita, à volta. Eu agarrei-as logo, pois o meu pai, carregado com a grafonola, ainda podia dizer que não, o que não aconteceu. Lá deu o dinheiro ao homem e – meu Deus, como hoje recordo (sem pieguices ,mas com uma lágrima no olho) – que alegria!
Começámos a descer para a 24 de Julho, quando o meu pai se volta para mim e a rir diz:
– O menino Vitó levou a sua avante, mas esqueceu-se de uma coisa: o pai não tem mais dinheiro e agora temos que ir para casa a pé; e olha que não te posso ajudar porque a grafonola ainda é pesada.
– Ó paizinho, não há problema; eu aguento.
– Sempre quero ver isso – retorquiu ele.
Chegámos ao Cais do Sodré e eu derreado, já não conseguia dar mais um passo. Meu pai, a quem também já doía o braço de carregar a grafonola, poisou-a no chão, junto a uma parede, sentou-me em cima dela, disse-me que não saísse dali porque ia ao bar da gare dos comboios, ver se estava lá alguém conhecido.
Fiquei ali e, passados uns minutos, o meu pai aparece com uma sandes de torresmos e um pirolito. Fiquei deliciado, porque já havia um bom bocado que tinha fome e sede, mas não tinha dito nada para não complicar ainda mais a situação. Então, ele disse-me:
– Bem, espero que tenhas aprendido a lição; mas como o pai ainda descobriu aqui no fundo do bolso uns trocos, que deram para as sandes e ainda nos sobrou 2$00, assim podemos ir de eléctrico até ao Rato.
Calculem o alívio e alegria quando ouvi esta novidade, e lá fomos os dois a rir às gargalhadas para a paragem do eléctrico.
Foi um dia em cheio (que saudades, pai)...
Mal chegámos a casa, o meu avô começou logo meter-se com o meu pai, em ar de troça:
– Uma grafonola... e avariada!
– Deixe estar, que eu e o Vitó arranjamos isto – dizia o meu pai.
Claro que eu não percebia nada daquelas coisas, mas recordo ter ficado todo orgulhoso com o comentário. No futuro viria a ter esse jeito para as máquinas e ferramentas, mas meu pai era um grande “engenhocas”, lá em casa arranjava tudo.
Limpámos muito bem a caixa, que estava um pouco mal tratada, e meu pai desmontou o engenho de corda. Lembro-me que era parecido com a corda dos relógios de sala e – vejam a nossa sorte – a corda não estava partida, tinha-se solto o engate da ponta, que prendia ao sistema de fixação do enrolamento. O meu pai todo contente só dizia:
– Eu sabia, eu sabia!
Após a montagem, com a família toda à volta do engenho posto em cima da mesa de jantar, o meu pai dá à corda, destrava a pequena alavanca e o prato começa a rodar. Foi uma proeza saudada com grande algazarra e alegria. Logo o meu avô deu o dito por não dito:
– Já podemos tentar arranjar uns discos meus.
Entretanto, meu pai monta uma agulha, dá à corda (avisa-nos que não se deve rodar até prender, pois pode partir a corda ou voltar a soltar-se o engate) e põe o disco da Maria Alice. Foi, decerto, o primeiro disco que ouvi na minha vida, de tal forma que ainda hoje me lembro do fado na totalidade:
Acredita meu amor
Quando te vou visitar
Às grades dessa prisão
Sufocada pela dor
De te ver assim penar
Estala meu coração
Por mim mataste um rival
És agora condenado
Ao degredo por castigo
Mas juro por amor fatal
Não vai meu corpo a teu lado
Mas vai minha alma contigo
Depois, tomámos o gosto à grafonola e o primeiro disco do meu avô que arranjámos foi da “ODEON”, com os temas, "Amor de Mãe" e "Os Olhos". Como sabem, as grafonolas não tinham uma velocidade constante, e então o meu avô, quando se ouvia, exclamava:
– Então não é que até parece que tenho voz de mulher!!
Disco de massa para grafonola
Mas voltemos às botas. Conforme tinha sido combinado, eram para estrear no primeiro dia de aulas, e assim foi, penso que a 6 ou 7 de Outubro. Nesse dia chovia torrencialmente, as botas vinham mesmo a calhar.
Ao fim do dia cheguei a casa desolado e com os pés todos molhados, pois as solas estavam todas desfeitas: As solas eram de cartão, colado sobre a sola inicial já gasta, muito bem pintadas, com anilina preta e graxa, o que lhes dava aquele aspecto consistente e novo! Fartei-me de chorar com o desgosto, mas mais tarde até rimos, porque nos lembrámos de como fora o negócio e, afinal, os enganados fomos nós. Pediu-se orçamento ao sapateiro, mas a minha avó disse logo que não se podia agora estar com aquela despesa, as solas e a mão-de-obra custavam quase 30$00 (o meu avô, naquela altura, ganhava 50$00 por noite e o meu pai, quando arranjava para cantar, não ganhava mais do que 20$00 a 25$00 por noite).
Ora, a solução acabou por ser uma alegria e um orgulho para todos nós, isto porque o meu bisavô (pai do meu avô Alfredo) era sapateiro e o meu avô, nos intervalos da escola, até o pai morrer, foi aprendendo o oficio e dando uma ajuda no trabalho. Como o meu avô era habilidoso, desembaraçava-se bem; comprou num armazém, em S. Paulo, um bocado de sola que lhe custou 6$00 ou 8$00 e, como tinha as ferramentas da arte de sapateiro que tinham sido do pai – as formas, sovelas etc. – foi ele próprio que me colocou as solas nas botas, botas que usei enquanto me serviram. Creio que ainda acabaram por levar umas solas de borracha.
Desculpem estes desabafos/recordações dos meus Fados!
Vítor Duarte Marceneiro
Video Clip da autoria de Vitmaco
Fernando Mauricio canta: Feira da Ladra
Letra de Carlos Conde
Música de Raul Pereira (Faddo Zé Grande)
Conhecida no meio do Fado por (Bia) nasceu no Porto em 1939.
Numa vinda a Lisboa vai ouvir fados ao Solar da Márcia Condessa, é desafiada a cantar, interpreta de tal maneira que logo é contratada pela dona da casa.
Fica a viver em Lisboa e rapidamente o seu estilo de cantar lhe granjeia muitos admiradores, acabando por fazer várias épocas em quase todas as casas de fado.
Na revista, onde obteve grandes êxito, em, Fado Para Esta Noite e John Português.
Grava todo o repertório que estreia, que é êxito assegurado.
Faz várias digressões ao estrangeiro, actuando para as comunidades emigrantes, actua em diversos festivais internacionais de música, festas de beneficência.
Beatriz da Conceição, canta com um estilo muito pessoal verdadeiro, diz muito bem e divide o verso como deve ser, é irreverente mas tem uma alma fadista incontestável. Tem um vasto repertório, porque raros foram os poetas que não lhe escrevessem poemas, como Artur Ribeiro, Vasco de Lima Couto, ou José Carlos Ary dos Santos que em parceria com Fernando Tordo, escreveram o Fado da Bia,
QUE SAUDADES BEATRIZ....
Beatriz da Conceição
O fado já não lhe chega,
Mas como nada lhe falta
Tanto canta numa adega
Como à luz de uma ribalta!
E embora sentindo a chama
Que leva à celebridade,
Não se deslumbra na fama
Nem se perde na vaidade!
A Beatriz da Conceição
Não é somente fadista,
Muito mais do que atracção
Ela impõe-se como artista!
Poema de Carlos Conde
CANÇÃO DE LISBOA
Cantado por Beatriz da Conceição
Letra de: Artur Ribeiro
Vejo do cais, mil janelas
Da minha velha Lisboa
Vejo Alfama das vielas
O Castelo, a Madragoa
E os meus olhos rasos de água
Deixam por toda a cidade
A minha prece de mágoa
Nesta canção de saudade
Estribilho
Quando eu partir
Reza por mim Lisboa
Que eu vou sentir Lisboa
Penas sem fim Lisboa
Saudade atroz
Que o coração magoa
E a minha voz entoa
Feita canção Lisboa
E se ao voltar
Me vires chorar, perdoa
Que eu abra a porta à tristeza
Para depois rir à toa
Tenho a certeza
Que ao ver as ruas
Tal qual hoje as vejo
Nesse teu ar de rainha do Tejo
Hei-de beijar-te Lisboa
Hei-de beijar com ternura
As tuas sete colinas
E vou andar à procura
De mim p’las esquinas
E tu Lisboa
Hás-de vir aqui ao cais
Como agora
P’ra eu te dizer a rir
O que hoje minha alma chora
Estribilho
Desde muito jovem que era um apaixonado pelo Fado o que aos 7 anos de idade levava os vizinhos a pedirem-lhe para cantar. Aos 11 anos numa tenda de circo no Caramão da Ajuda, cantou pela primeira vez, acompanhado por guitarra e violaCésar Morgado era serralheiro de profissão, e cantava o Fado como amador, até que foi contratado para a "NauCatrineta" em Alfama ( que mais tarde viria a ser O Poeta), e assim se profissionalizou.
Em 1958 ganhou a "Guitarra de Ouro" num concurso, em que ficou em primeiro lugar, no antigo Café Luso.
Gravou uma dezena de EP´s e vários "long-play".
Foi convidado de várias rádios e em 1961 actuou na televisão.
Em Lisboa cantou ainda no Faia, no Retiro da Calçada de Carriche, e, esteve um bom par de anos no Solar da Madragoa.
No Porto actuou na Candeia, Tamariz e Palladium.
Tem um irmão de seu nome Leopoldo Morgado, que reside no Porto, e que também canta o Fado.
César Morgado
Canta: Jogo de Beijos
Letra de Carlos Conde
Música de: "Fado Louco" Alfredo Marceneiro
EU TAMBÉM TIVE UM SONHO
Na minha cama, só, estava deitado e, sem poder dormir, pus-me a sonhar — que eu sonho muitas vezes acordado e o que sonhei então vou-lhes contar:
Tive um pesadelo, em que eu, por conveniência, era comunista, membro de uma loja política, e que principiava com a minha ida ao Ministério da Cultura, onde o ministro me incumbia, não sem alguma pompa — que eu, no sonho mau, era algo presunçoso —, de superintender, junto da UNESCO, à candidatura do Fado a obra-prima do património oral e imaterial da humanidade, para o que me constituía em embaixador daquela ciclópica tarefa. O ministro disse-me ainda para formar uma equipa que trabalhasse comigo todos os pormenores para o bom sucesso da empresa.
Mal saí do Palácio da Ajuda desatei a falar ao telemóvel, primeiro para convidar uma jovem fadista em ascensão — achei de bom tom acrescentar algum ar hodierno à coisa —, depois um musicólogo de renome, de esquerda, como convém, finalmente o Museu do Fado, apoiado em várias associações da guitarra, do contrabaixo, do clarinete e de outros castiços instrumentos.
À medida que o pesadelo avançava, dei comigo a idealizar a cena em que o presidente Cavaco Silva me condecoraria com a Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, e uma onda de jactância abateu-se sobre os meus cabelos brancos, um tanto ralos, antecipando o êxtase pelos dividendos de triunfar onde o afamado tango fracassara. Mas a minha altivez, nessa fantasia, não conhecia limites e pus-me logo a pensar noutras glórias, noutras honrarias, eu tinha de ir mais além, o meu prestígio derrubaria fronteiras. Foi com algum arrepio que me imaginei no Itamarati, em cena idêntica, o Lula a galardoar-me com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, da mesma forma enternecida com que abraça o Chávez e, com mais alguns empenhos de peso, a receber até a Legião de Honra, lamentando, porém, que o “mon ami” Mitérrand já não fizesse parte do mundo dos vivos, pois não teria de renegar o meu comunismo oportunista a fim de entregar o tórax nas mãos do reaccionário Sarkozy. Quanto à da Jarreteira e do Banho, paciência, ficava de fora, tal como a Inglaterra que não integra o lote dos 170 países que subscreveram a Convenção.
E foi nessa altura do pesadelo que me ocorreu uma luminosa ideia que me ajudaria pela certa a atingir aqueles desideratos e mais alguns: dado que, além da Inglaterra, os Estados Unidos da América também estavam de fora da venturosa Convenção, eu teria apenas de agradar à maioria dos estados aderentes, quase todos do terceiro mundo. Como? Muito simplesmente lançando a teoria de que o fado nascera em África — Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné — e na América do Sul — Brasil e Rio da Prata. Estava feita a pombinha, deixava de fora a Ásia e a Oceânia, porque era um pouco complicado arranjar analogias entre a música fadista e as daquelas paragens, mas os estados desses continentes sensibilizar-se-iam com o aplauso dos seus pares africanos e sul-americanos. Os portugueses poderiam levar isso a mal, mas quem se rala com a indignação lusitana perante a minha ambição? Nada me deterá. Imediatamente após esta minha conclusão ouvi um burburinho, surgiram numerosos e agitados vultos na minha direcção, apavorei-me.
E eu que andava para ali entontecido, com o sol, com a luz, com a algazarra; de repente, porém fui atraído pelo doce trinar de uma guitarra: era o fado, mas o fado rigoroso, cantava-o a Severa a preceito, com a guitarra nas mãos do Vimioso tangia anseios de fogo no peito.
É verdade, era uma turba imensa, como se fora uma manifestação da Intersindical (que saudades!), só que encabeçada por Luiz de Camões, Fernando Pessoa, Alfredo Marceneiro e Amália Rodrigues — fiquei como que paralisado. Junto à cabeça da manif lobriguei ainda Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão-Ferreira, Miguel Torga, Pedro Homem de Mello, António Botto, tudo poetas que eu cantei, consegui até ver o O’Neill escrevinhando uns versos a ridicularizarem-me, enquanto a multidão se ia aproximando de mim, sufocando-me, e eu a reconhecer cada vez mais rostos, Maria Teresa de Noronha, Ercília Costa, a “santa” do Fado, Armandinho, José Nunes e Jaime Santos, com uma fita negra nas guitarras, Carlos Ramos, Manuel de Almeida, Hermínia Silva, Júlio Gomes, Alfredo Mendes, Martinho d’Assunção, Joaquim do Vale (“covinhas”), Pedro Leal, Manuel Martins, José Inácio e Francisco Perez Andión, o meu Paquito, todos eles com fumos nas violas. O pesadelo atingia o seu auge, com tantos olhares de desprezo em cima da minha pessoa, todos os meus mestres, todas as vozes, os tocadores, os poetas e os compositores que eu idolatrei, Júlio Peres, Frederico Valério, Lucília do Carmo, Alain Oulman, Berta Cardoso, Fernando Farinha, José António Sabrosa, Carlos Conde, Henrique Rego, os dois Joões, Linhares Barbosa (o autor do “Pierrot”, sob o pseudónimo de Luís de Sousa) e Silva Tavares, Manuel de Andrade, Vasco Lima Couto, Joaquim Campos, Júlio Proença, os manos Porfírio, Ricardo e José, João Soares Fernandes (“ferro-velho”), também Fernando Maurício, Carlos Zel, e muitos mais. Estava ali o fado inteiro — como cantou o Marceneiro, o fado que eu traíra da forma mais vil e videirinha.
Camões adiantou-se então a todos e proferiu, num timbre forte e muito bonito, a fazer lembrar Manuel Alegre: “para trás, fadista ímpio e traidor aos teus, já não és digno da nossa pena, das nossas liras, do nosso canto. A partir de agora, doravante e para o futuro, não mais, não mais, voltarás a cantar esta canção!”
Senti um frio inumano a percorrer-me o corpo todo. Acordei encharcado em suor e dei graças a Deus por tudo não passar de um sonho, ainda que sinistro.
E eu então, fadista como era, peguei numa guitarra e fui tocar. Cantei ao desafio com a Severa, mas isto meus senhores, foi a sonhar.
E ainda bem, porque mal acordei pus-me foi a cantar quadras do Luis Vaz e do Fernando, com complemento da Rodrigues, assim uma espécie de verso de pé quebrado, ao qual, como vocês todos sabem, se chama versículo. Claro que o cantei na famosa melodia do Tio Alfredo, que lhe deu o mesmo nome. De seguida adormeci profundamente, em paz com a minha consciência.
Lisboa, 5 de Abril de 2008
João Braga
P.S. As palavras em itálico são extraidas de uma letra de Francisco Radamanto que eu, no que toca a autorias, não brinco. Nem sequer em sonhos.
Eu hoje tive um sonho, e ouvi novamente o Dr. Martin Luther King, ouvi e reli também o poema, PEDRA FILOSOFAL, cantada pelo Fausto, de António Gedeão e Manuel Freire, tema incluído neste video-clip, que já aqui publiquei em Abril de 2008.
No meu sonho lembrei-me dos "Baladeiros" com cantigas de protesto, de intervenção social, de denúncia, que tínhamos em Portugal, no tempo da ditadura, alguns deles até exilados... onde estão?
Cá para mim estão todos bem na vida... será por isso que estão calados???!!!
Acordei sobressaltado, será que OS PORTUGUESES DEIXARAM DE SONHAR?
Será que já não há cantores e poetas de canções de protesto? e no Fado, será que alguem com veia poética, escreva letras para Fados de protesto, (do reviralho, como diria o meu avô) ou será que continuará a ser considerado "reaccionário", é que já não há censura... não, não há, mas Há MEDO... de perder o "tacho".
Martin Luther King, foi assassinado há mais 40 anos por ter tido a ousadia de SONHAR, numa sociedade racista e intolerante .
MESMO QUE ISSO LHE CUSTE A VIDA , SEMPRE QUE UM HOMEM SONHA, O MUNDO PULA E AVANÇA
Manuel Freire canta:
Poema de António Gedeão
Música de Manuel Freire
PEDRA FILOSOFAL
Eles não sabem que o sonho
É uma constante da vida
Tão concreta e definida
Como outra coisa qualquer
Como esta pedra cinzenta
Em que me sento e descanso
Como este ribeiro manso
Em serenos sobressaltos
Como estes pinheiros altos
Em que verde e oiro se agitam
Como estas aves que gritam
Em bebedeiras de azul
Eles não sabem que o sonho
É vinho, é espuma, é fermento
Bichinho alacre e sedento
De focinho pontiagudo
Num perpétuo movimento
Eles não sabem que o sonho
É tela, é cor, é pincel
Base, fuste ou capitel
Arco em ogiva, vitral
Pináculo de catedral
Contraponto, sinfonia
Máscara grega, magia
Que é retorta de alquimista
Mapa do mundo distante
Rosa-dos-ventos, Infante
Caravela quinhentista
Que é Cabo da Boa Esperança
Ouro, canela, marfim
Florete de espadachim
Bastidor, passo de dança
Columbina e Arlequim
Passarola voadora
Pára-raios, locomotiva
Barco de proa festiva
Alto-forno, geradora
Cisão do átomo, radar
Ultra-som, televisão
Desembarque em foguetão
Na superfície lunar
Eles não sabem nem sonham
Que o sonho comanda a vida
Que sempre que um homem sonha
O mundo pula e avança
Como bola colorida
Entre as mãos de uma criança
JOAQUIM CAMPOS, nasceu em Lisboa, na Fonte Santa, em 1911, passando, porém, a viver em Alfama, onde se iniciou a cantar o fado ainda criança. Foi no entanto em Setúbal que se apresentou em público pela primeira vez, em 1923, com 12 anos de idade, cantando uma letra que adquirira num quiosque do Rossio onde se vendiam folhetos com cantigas de poetas populares.
Aos 16 anos empregou-se na Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses como escriturário, lugar em que permaneceu até à reforma, sem todavia deixar de cantar o fado, que foi a grande paixão da sua vida.
Foi considerado por muitos, o maior cantador da sua geração.
Dotado de uma voz suave e límpida, e primando por uma dicção impecável, Joaquim Campos atingiu, na verdade, alto nível como cantador, considerado por alguns como o "Bruxo do fado", devido ao estilo das suas interpretações e à forte personalidade artística que o caracterizou.
Fundador, com Alberto Costa, do Grémio Artístico Amigos do Fado, responsável pela organização de variadíssimas festas de beneficência, Joaquim Campos foi também um homem bom, que cultivou a amizade e a solidariedade, nunca se escusando a dar o seu contributo para minorar situações difíceis.
Ainda jovem, foi grande admirador de Luís Carlos da Silva (Petrolino), que na companhia do guitarrista Norberto ia frequentemente escutar ao café da Rua do Jardim do Regedor, ao tempo em que aquele ali actuava, o que contribuiu para o apuramento da sensibilidade musical de que deu provas na composição dos seus fados: Estações da Vida, Pobrezinhos, Amadores, A Boneca, Fado Puxavante, Voz do Mar, Fado Castanheira, Fado Alexandrino, Fado Vitória, Fado Rosita, Nosso Fado, O Cavador, Fado Simples, Fado Lisboa, Fado Estela, Fado Tango, Fado Aurora, O Meu Filho e Fado Sem Pernas.
Gravou em disco, além de alguns desses fados, uma Desgarrada com o Dr. António Menano e com Ercília Costa, um Dueto Sobre o Fado e Romance com Júlio Proença, e Fado da Mouraria com Ercília Costa, tendo-se exibido por todo o País. Mas foi sobretudo em Lisboa que obteve os seus grandes sucessos, cantando no Retiro da Severa, no Café Luso e Café Mondego e no Solar da Alegria, bem como no Coliseu dos Recreios, Eden- Teatro, Teatro Maria Vitória e Teatro Apolo.
Joaquim Campos (que esteve ligado, sentimentalmente, à cantadeira Rosa Maria até à morte prematura desta) foi um intérprete particularmente cuidadoso na escolha do seu reportório, preferindo letras dos poetas populares Fernando Teles, Manuel Soares, Linhares Barbosa e Gabriel de Oliveira.
Ao chegar a hora de se retirar da actividade artística, Joaquim Campos teve uma grandiosa festa de consagração em 1945, no Teatro Capitólio, onde os seus inumeráveis amigos e admiradores lhe testemunharam de forma calorosa o apreço em .que tinham as suas qualidades humanas e de insuperável cantador.
© Vítor Duarte Marceneiro
INSPIRAÇÃO
Letra de: Gabriel de Oliveira
O fadista quando canta,
Se tiver no pensamento
Um sorriso de mulher,
Vibra-lhe a voz na garganta,
Canta com mais sentimento
Faz da garganta o que quer.
A mulher tem o condão
Que nos encanta e domina
De ameigar a nossa voz...
E uma estranha sensação
Da sua graça divina
Palpita dentro de nós.
Será por isso que a gente,
Cantando um fado qualquer,
Canta melhor, sendo amado:
- Há-de haver eternamente
Uma sombra de mulher
No sentimento dum fado