Que saudades daquela noite no «Solar da Hermínia», em que cantei pela primeira vez, na presença do meu pai e do meu avô.
O «SOLAR da HERMÍNIA» e a própria Hermínia Silva fazem parte de um dos episódios mais marcantes da minha vida, na relação pai/avô/fado
Corria o ano de 1965, inícios de 1966 , tinha cerca de 20 anos, fiz uma pausa nos bailaricos e outros «poisos» e comecei a frequentar o fado amador, que praticamente desconhecia, pois, até essa altura, costumava acompanhar o meu avô e o meu pai às casas tradicionais.
Certo dia, uns amigos convidaram-me para uma noite de fados no Galito, que ficava no Estoril. Lá fui e, como é lógico entre os frequentadores habituais, ao saberem de quem eu era filho e neto, logo pensaram que havia mais um para cantar. Gostei imenso do ambiente e passei a ser frequentador assíduo. Ali conheci o Zé Pracana, o malogrado Carlos Zel, o Frazão, pai deste, e do saudoso Alcino, que era então um miúdo mas já demonstrava o gosto que tinha pela música e pela guitarra portuguesa (estava sempre a dedilhar a guitarra do Zé Inácio, mal este parava de tocar e a poisava), o Valdemar Silva, o saudoso Carlos Barra, a Maria do Carmo «Micá», e tantos outros amadores do Fado, na época.
Ora eu não cantava. Para ser sincero, com muita pena minha, achava que não conseguia e, para «meter água», era melhor estar calado. Isto porque tinha a noção da responsabilidade de ser filho e neto de quem era.
Mas a rapaziada estava sempre a apertar comigo (este gajo é filho de fadistas e não canta?), alguns até aventavam a hipótese de que eu não cantava porque tinha a mania de que era bom de mais para cantar ali! Mal sabiam eles a pena que eu tinha de sentir que não era capaz.
Certa noite, por insistência do Zé Inácio, grande executante de viola, mas que, na altura, fazia o acompanhamento à guitarra, acompanhado à viola pelo «Pirolito da Ericeira», começaram a dedilhar a Marcha do Marceneiro, o Zé Inácio começou a desafiar-me, era no princípio da noite, não havia ainda muitos clientes, timidamente comecei a entoar o poema Amor é Água Que Corre (eu nem calculava que, afinal, sabia o poema todo). Parece que não saiu muito mal, recordo que o tom em que cantei foi Fá (hoje canto em So/); no final, o Zé Inácio disse-me:
- Como vês, é preciso não ter medo, perder a vergonha e, a partir de agora, ir praticando. Tomei-lhe o gosto e, durante algum tempo, só cantava este fado. Foi ainda com a ajuda do Zé Inácio que comecei a ensaiar e a cantar outros poemas, mas cantava sempre letras e músicas do repertório do meu avô.
Uma noite, no fim da fadistice do costume no Galito, o Valdemar Silva, que era conhecido pelo «Chico Fadista» e passou a ser o meu companheiro destas andanças, aceitou o meu convite para irmos até ao Bairro Alto, ter com o meu pai, Alfredo Duarte Júnior, que estava a cantar contratado no «Solar da Hermínia».
Chegámos, as luzes estavam reduzidas, como é costume quando se canta o fado, era o meu pai que estava a cantar, pelo que ficámos logo ali na entrada, sentámos-nos na mesa da Dona Hermínia que, prontamente, com o ar carinhoso e sorridente com que sempre me recebia, segredou-me ao ouvido que o meu avô, Alfredo Marceneiro, se encontrava na sala.
O meu pai termina o fado que estava a cantar e informa os presentes:
— Senhoras e Senhores, o meu pai, Alfredo Marceneiro, a pedido da Dona Hermínia, vai cantar.
Esta informação foi, de imediato, estrondosa e efusivamente recebida pela assistência, pois era do conhecimento geral, o quanto era difícil convencer Alfredo Marceneiro a cantar.
O meu avô cantou, julgo que uns três fados, sempre escutados num rigoroso silêncio e, no final, vigorosamente aplaudidos.
Ainda com as luzes reduzidas e após uma das entusiásticas ovações que o meu avô teve, sublinhada por ditos do tipo «- Ah! Grande Ti' Alfredo», houve um curto espaço de tempo de relativo silêncio e eis que o Valdemar, o «Chico Fadista», se levanta de repente e, com uma voz possante, diz sensivelmente isto:
- O que vocês não sabem é que aqui o Vitó, neto do Ti Alfredo também canta, e não deixa a família ficar mal!
Fez-se um silêncio total na sala, eu fiquei sem pinga de sangue! (- Ó Chico, tu és maluco?)
A assistência começou a bater palmas, insistindo para que cantasse, eu nem conseguia levantar-me, olhei de relance para o meu pai e para o meu avô, estavam ambos na expectativa, eu só queria que aparecesse ali um buraco onde pudesse desaparecer. A Dona Hermínia, então, com o seu habitual bom humor, disse-me: «- Vai, filho, não tenhas medo. Quando a música começa, a gente esquece tudo.»
Levantei-me, hesitante, e dirigi-me para junto dos guitarristas, pedi que tocassem a «Marcha do meu Avô». Aos acordes iniciais da música, todo eu tremia, mas foi um momento inesquecível, eu ia cantar à frente do meu pai e do meu avô. E, logo a seguir ao meu avô, era uma grande responsabilidade.
Comecei a cantar e nunca tirei os olhos do meu avô. Este, com o cotovelo sobre a mesa e a cabeça apoiada no braço, de olhos fechados, ouvia-me atentamente. Reparei que trauteava baixinho os versos que eu ia cantando e ia acenando com a cabeça.
Quando terminei, o público foi generoso e aplaudiu-me. Dona Hermínia comentou: «- Temos fadista.»
O comentário do meu avô foi: «- Não está mal, mas tem é que aprender outros versos, para não andar a cantar a mesma coisa que eu ando a cantar há mais de trinta anos.» !.
O meu pai avisou-me logo: «- Deixa lá as fadistices, que isto não dá nada, tira mas é o teu curso, e fado, só por desporto.»
Não segui estes conselhos e, sempre que me dão a oportunidade continuo a cantar, nas suas músicas, os versos do seu repertório não enjeitando o “apelido” MARCENEIRO.
Com este episódio ultrapassei algumas barreiras que até então julgava intransponíveis, e assim acabava de entrar no Fado, bem ou mal, mais um elemento da família, dando a origem ás “ 3 GERAÇÕES DE FADO de MARCENEIRO”
Gravei em disco e em Televisão com meu avô e meu pai