Álvaro Marciano da Silveira (Álvaro Ilhéu), nasceu no Funchal em 1883.
Aprendeu no Funchal a arte de construtor de violinos com Augusto M. da Costa.
Vem para Lisboa e continua a construir violinos bem como alaúdes especialmente para Inglaterra, mas foi como guitarreiro que adquiriu fama de nomeada, guitarristas de mérito foram seus clientes, Armandinho, Salgado do Carmo, Júlio Silva, Jaime Santos e outros.
Jaime Santos afirmou: — Álvaro da Silveira é o construtor de guitarras que mais conhece da sua arte em Portugal, trata-se quanto a mim, do único que resta da «velha guarda», considero ainda que quase a fazer os noventa anos é o “Stradivarius” português
ENTREVISTA
Álvaro da Silveira: duas mãos que falam mais do que a boca, duas mãos expressivas que acariciam mansamente as cordas da guitarra. É de tarde e, lá fora, pelos, vidros da janela fechada, vejo que cai uma chuva miudinha, triste. Neste segundo andar de um beco desconhecido, porém, a tristeza não se estampou ainda nem nas coisas nem nas pessoas. Os olhos de Álvaro da Silveira, com oitenta e cinco anos a pesar-lhes em cima, são vivos como os de um jovem:
— Sinto-me completamente bem e é muito raro pôr os óculos. O médico dá,..me, ainda, quinze a vinte anos de vida.
É bom ouvir falar assim uma pessoa, naquela idade em que o comum dos mortais já perdeu a esperança. Mas Álvaro da Silveira trá-la consigo, aquece-se à sua chama, vive dela:
De Verão, levanto-me às cinco, seis horas da madrugada e pego imediatamente no trabalho, que dura todo o dia, porque nunca me falta. Agora, com o frio, só saio da cama lá para as oito.
Mas quem é Álvaro da Silveira? Nascido no Funchal há 85 anos, dedica-se à actividade de construtor de guitarras e violas desde os onze anos. Foi ainda na sua terra natal que se iniciou na profissão, às ordens do mestre Augusto da Costa (que se especializara em Itália). Mas aos vinte e poucos já se
encontrava em Lisboa: era encarregado de uma oficina na Rua da Boavista (a Casa Artur de Albuquerque, hoje designada Santos & Silva Vieira, Lda., onde, na altura, apenas se construíam instrumentos musicais).
É, hoje, um simpático ancião de cabelos brancos e convívio agradável.
OFICINA PRÓPRIA E LOJA DE VENDAS
— Saí de lá por minha livre vontade. Eu queria trabalhar, por minha conta e consegui-o. Tive, depois, uma oficina e uma loja de vendas no Bairro Alto, na Travessa dos Inglesinhos. Mas há quase treze
anos que estou nesta casa, onde, praticamente, nem tenho espaço para me virar. Vocé sabe: as rendas caras, a vida difícil, a mulher doente.
Perguntamos-lhe se lembra de alguns nomes famosos para quem tenha trabalhado. Seus olhos adquirem um brilho invulgar, não isento de serenidade, e parecem perscrutar o passado:
— Todos os grandes mestres espanhóis de viola me deram a honra de ser meus clientes: Cano, que morreu há já cinquenta e oito anos e chegou a tocar para os reis D. Luís e D. Carlos; Rabel, que era um excelente professor; Sainz, etc. Dos guitarristas portugueses, recordo um em especial: Júlio Silva, que foi o maior de todos. Mas lembro também Carmo Dias, Salgado do Carmo, eu sei lá…
— As guitarras que constrói são de modelo vulgar ou têm alguma característica própria?
— O meu modelo é exclusivo, porque ninguém ainda o conseguiu imitar. Tenho o meu segredo. Uma guitarra custa, hoje em dia, à volta de três contos. (A esposa, que assiste à conversa, interrompe: «Eles bem desmancham os instrumentos que ele faz para descobrirem o segredo. Mas é impossível: foi ele próprio que fabricou as ferramentas com que os constrói»).
Álvaro da Silveira olha a rua lá fora, onde passam os eléctricos e onde um sol, hesitante ainda, põe um brilho estranho nas coisas. Olha a rua como quem olha a vida, como quem surpreende (ou procura descobrir) o futuro. O futuro? Sim, o futuro, apesar das suas palavras repassadas de uma serena angústia:
— Um dia destes, talvez, vou à procura do Asilo e dizem-me que não há vaga. E levei uma vida inteira a trabalhar...
— E nas horas vagas o que faz?
— Nas horas vagas? Olhe, eu não tenho horas vagas. Só aos domingos, no Verão, é que dou uns passeios: Vou nas excursões por esse País fora, mas só um dia de cada vez. Os clientes não me deixam mais. Gosto do ar dos campos, de respirar de pulmões abertos. Só não conheço o Algarve e uma parte do Minho. Mas hei-de lá ir qualquer dia...
RECORDAÇÕES E OPINIÕES
— Em tempos dei lições de guitarra. Afino toda a espécie de instrumentos de corda, mas construi-los é a minha paixão. A indústria perdeu importância, nos últimos tempos. Não há quem trabalhe nisto, só curiosos. As canções também não ajudam — são muito más, em geral. Há ainda as guitarras eléctricas, que não produzem música, produzem ruído. Aqui há cinquenta anos, as oficinas não, queriam receber aprendizes; hoje é o que se vê: não há oficiais. Mas fazer um instrumento é fácil: qualquer caixote, com um buraco e cordas, pode tocar. O difícil é fazer bons instrumentos.
— Trabalha sozinho?
— Podia ter dois ou três homens por minha conta, porque o trabalho que há dava para lhes pagar. Mas não tenho espaço nem existe quem saiba trabalhar (e sobretudo quem queira aprender). Dos construtores do meu tempo apenas eu ainda vivo.
Vem a propósito falar do Fado. Saber de um homem com quase um século o que pensa do fado dos nossos dias:
— Não me servem os fados modernos, que soo meias-canções. O fado castiço, o velho Fado, são poucos os intérpretes que ainda o cultivam: a grande Hermínia, Maria Teresa de Noronha...
— E Amália?
— Gosto também, mas Amália, além do Fado, canta outras coisas que nada têm a ver com o Fado!
A chuva recomeçou lá fora. Álvaro da Silveira está emocionado (os olhos líquidos, pois então...), e o repórter despede-se. Não sem, antes, fazer uma promessa:
— Daqui a quinze anos cá estarei, quando o senhor fizer os cem, para o entrevistar outra vez.
In: Revista TV – 1968
Fotos de: Coelho da Silva
Texto de: Torquato da Luz
Etiqueta que Álvaro da Silveira colocava
nos instrumentos musicais que constuia