A oportunidade e o oportunismo no Fado
Recentemente surgiram duas 'colectâneas' de fado – de Lisboa e Coimbra – o que é de louvar na medida em que mostra aos que hoje cantam como se cantava e também se era moderno, cada um no seu tempo, claro está.
Mas a diferença que ressalta entre estas duas 'colectâneas' é o modus facienti, isto é a distinta maneira de apresentar, o cuidado colocado na edição e atenção ao fado. As duas edições são: “Fado, Sempre, ontem, hoje e amanhã ” da Difference com distribuição da Iplay, e a caixa azul de “Fado capital” da Ovação.
A primeira, é uma edição cuidado desde logo no aspecto, bonita capa, sóbria, e fácil e manusear, consultar e ler.
“Fado, Sempre, ontem, hoje e amanhã” revela esmero, atenção e respeito por esta canção e não um mero aproveitamento porque “o fado está a dar” (a expressão é feia, e infelizmente é usada).
Nesta edição da Difference, muito bem masterizada, os fadistas surgem num contexto que é explicado e argumentado, no ãmbito da História do Fado.
Na edição da Ovação os fadistas vão de A a Z, sem contexto nem organização que não seja a do abecedário, começa com Ada de Castro pelas razões óbvias e encerra com Zélia Lopes pelas mesmas razões, mesmo que a importância destas duas artistas, no contexto fadista, seja absolutamente diferente.
Ada de Castro é uma mulher do fado, tem uma carreira e sabe-se quem é.
A Zélia foi a um Festival RTP, cantou e canta bem, e apenas se aventurou no fado.
Para a história da canção de Lisboa o contributo de Zélia vale por isso mesmo e o da Ada é significativo, artista de casas típicas como O Faia ou O Folclore é indiscutivelmente um nome a reter.
Mas a caixa da Ovação brinda-nos com surpresas como Maria José da Guia (uma falha na edição da Difference) ou Augusta Ermida.
Embora outros nomes colocados alfabeticamente perderam-se na memória no tempo – esse grande juiz – se é que alguma vez tiveram memória ou a editora saiba até quem são, pois o “resumido” texto da caixa da Ovação, em cor dourada, não assinado, é pobre e uma manta de retalhos onde rapidamente o leitor mais atento nota uma colagem apressada de outros sem articulação ou sequer ligação aos fadistas incluídos entre eles, Amália Rodrigues, que não podia faltar.
O texto é pobre, feito de lugares comuns, revela pouca pesquisa.
No tocante ao fado de Lisboa faz-se tábua rasa entre a Severa e Amália Rodrigues, calcule-se.
Nesta caixa que reúne 120 fados cantados tanto por nomes gloriosos da arte fadista como Fernanda Maria, Fernando Maurício, Maria da Fé ou Alfredo Marceneiro e AMÁLIA, passando outros nomes maiores como Maria Amorim, António Rocha, Cidália Moreira, Saudade dos Santos, Vasco Rafael, inclui também os “aventureiros no fado”, casos dops cançonetistas Mirene Cardinalli e Rui de Mascarenhas, ou nomes que nos interrogam como o de Bela Bueri ou Conceição que terá gravado em 1971 “A minha vida fadista”.
E se pensam que é a grande Beatriz da Conceição, não; não é, pois esta está representada com um magnífico poema de Vasco de Lima Couto, “Dei-te um nome em minha cama”.
Esta caixa inclui algumas bizarrias como as Entre Vozes, na sua formação de 2000, ou ainda na letra D, surge Daniel Gouveia, um nome a que ninguém fica indiferente nas lides fadistas, e isto porque está sempre presente, porquê?... ninguém sabe.
Além das falhas nesta caixa de 10 CD e um DVD o que sobressai é a desarrumação e falta de articulação, além de um descuido quer de apresentação (artwork) quer de masterização.
Em sinal absolutamente contrário surge “Fado, Sempre, ontem, hoje e amanhã ” coordenado pelo editor Samuel Lopes (parabéns!), e com excelentes textos de Nuno Lopes – um jornalista há muito ligado às lides fadistas – e Manuel Halpern – que editou já um livro polémico sobre as novas gerações-.
Os textos estão bem escritos e claros.
Sobressai quanto a nós o de Nuno Lopes pois fez uma esclarecida síntese da história do fado desde as suas “tumultuosas” e muito discutidas origens, até à década de 1980, quando consideram os dois autores poder falar-se de um novo fado.
O texto de Nuno Lopes bem argumentado e com pesquisa tem ainda a qualidade de destacar algumas figuras sobre as quais faz uma síntese biográfica casos, entre outros, de Amália (sempre ela!), Fernanda Maria, Alfredo Marceneiro, Berta Cardoso, Carlos do Carmo, ou Mariza.
O texto, muito bem intitulado, “Fado, um gosto português”, marcando desde logo a portugalidade do fado, tem contextualização histórico-social, referências à bibliografia, designadamente o livro recente de Rui Vieira Nery, mas também outros ensaios editados como o de Vítor Duarte Marceneiro sobre Hermínia Silva.
Manuel Halpern retoma no seu texto uma sua frase-chave forte: “A saudade já não é o que era”, um tão brilhante título como o de Nuno Lopes, aqui de facto nota-se a inteligência do editor de colocar dois jornalistas à mesma altura.
Voltando ao texto de Halpern, está muito bem argumentado, citando até Camões para afirmar que “há fado, mas os tempos são outros e outras as vontades”, além de não faltar o contexto sócio-cultural e com uma ousadia intitulada: “receita para um disco de novo fado” que vale a leitura (bravo!).
Refira-se sobre esta excelente edição, a vários níveis, de “Fado, Sempre, ontem, hoje e amanhã”, a magnífica masterização. Um som absolutamente espectacular.
Se outras não fossem as excelentes qualidades deste Livro-CD há ainda o cuidado na escolha dos intérpretes e o incluir o primeiro registo de Carminho, a filha da fadista Teresa Siqueira, que está, e irá dar cartas.
Carminho canta “As penas” no Fado Perseguição de Carlos da Maia.
Se notámos nesta edição a falta de Maria José da Guia e interrogamos a inclusão de João Braga, seguramente sem os intérpretes incluídos na edição da Difference é que não se fazia a história do fado.
Diga-se, fazendo-se justiça a tais autores, designadamente a Nuno Lopes, que mesmo fadistas de referência que não são incluídos em CD, estão referenciados de algum modo nos textos.
A “santa do fado”, Ercília Costa, tem um texto só seu, apesar de não a ouvirmos, mas onde Nuno Lopes revela, citando a poetisa Fernanda de Castro que “a primeira internacional” do fado viajava sempre com bacalhau e azeite português porque desconfiava da gastronomia dos hotéis.
Outro exemplo, e daí os bem argumentados textos, ao incluir Frutuoso França, no popular tema da década de 1940, “Amizades”, refere-o como representante de um grupo de fadistas da "velha guarda" constituído por Júlio Vieitas, José Coelho, Gabino Ferreira, Júlio Peres e Manuel Calisto (o rouxinol da Madragoa). Referem-se nomes como José Porfírio, Raul Nery e o seu conjunto de guitarras, etc.. Nos novos não é esquecido o audaz gesto de Paulo Bragança, Mísia está muito bem contextualizada e o fenómeno Mariza argumentado q.b. para estar entre as glórias do CD “Sempre”.
Esta edição além do texto que inclui um guia das casas de fado, é constituída por quatro CD referentes aos nomes de Sempre, Ontem, Hoje e Amanhã.
Relativamente ao Amanhã, é recuperada aquela que terá sido a primeira gravação de Raquel Tavares para a Metrosom e que não faz justiça à notável fadista, porque será?
De qualquer forma nota máxima para a edição da Difference, e muito rasa para a da Ovação que tem apenas o mérito de trazer para o digital alguns nomes realmente de interesse, mas é uma edição pobre que nem o DVD salva.
As duas edições demonstram claramente a oportunidade do Fado e o oportunismo no Fado.
Inez Benamor/ Hardmúsica