Jornal I - informação. Edição fim-de-semana,integra a revista "NÓS Melancólicos Nº 46 -20/21 Março de 2010"
Texto de Maria Ramos Silva Fotos de José Miguel Soares
De avô para neto, a história é de canção. e de família. A viagem pelo ADN Marceneiro é um passeio por gerações que não esquecem o homem do lenço, do boné, do cigarro pendurado na boca com carisma e do discurso castiço. Ti Alfredo pela memória de Vítor Duarte
A plateia do extinto Solar da Hermínia tranca-se num reverente silêncio. O avô canta. O desfecho não traz surpresa. As palmas enchem a sala rendida à voz e à guitarra. A maior novidade do serão é anunciada pela boca do amigo Chico Fadista. "Mas vocês não sabem que existe uma terceira geração, aqui o Vítor também canta," O burburinho volta a perder potência e Vitó puxa dos desconhecidos galões. Ainda com as luzes em baixo, nessa passada artística em que os parentescos sucumbem às críticas sérias, o avô solta o veredicto, orgulhoso mas retorcido. "Pois, não está mau. É pena é andar a cantar a mesma coisa que eu ando a cantar há 30 anos! Arranje repertório."
Ao seu jeito sui generis concede o primeiro elogio ao neto. Outros duetos entre Vítor Duarte e o castiço companheiro do boné e do lenço se seguiriam, com o temperamento do veterano sempre a ser cozinhado em lume alto. "Aconteceu cantarmos os dois e ele interromper a meio. 'Estou cansado, já não me apetece. Esqueci-me dos versos. ‘ Quem começava? Claro, abre o avozinho.
Depois, era só agarrar." Numa actuação em Cascais, já com impressionantes 89 anos, exibe o cabelo negro integral que dispensava truques de pintura e os óculos escuros que se encaixaram na cara depois da operação às cataratas. A idosa voz que dá a deixa não vacila. O corpo hirto, falsamente negligente e distante das atenções, encosta-se à parede. Uma das mãos, escondida nos bolsos, continua a inibir movimentos desnecessários do tronco. Ti Alfredo, que o ofício de Marceneiro acabou por baptizar em pia popular, disfarça entre os restantes cinco dedos um lenço que aproxima discretamente dos cantos da boca. Um pormenor delicioso. "Colava a placa com marmelada, e esta começava a derreter!"
A vida de fadista não abundava em açúcar. A conversa do fado nem sequer vagueava pelos corredores do lar. Não valia fortunas e via a saúde empenhada pelas madrugadas fora. Uma criança lá em casa a cantar? "Nem pensar nisso. O fado, andar na noite, não dá nada", dizia. Mas pelo menos uma das etapas do percurso era canja. Canja com arroz.
A iguaria que lhe confortou o estômago durante 60 anos sempre que chegava a casa vindo da noite, partilhada com os fiéis escudeiros. "Quem o levasse encostava o carro e ia comer uma sopinha com ele. Era uma alegria poderem dizer "fui a casa do Ti Alfredo!" As fotos glamorosas dos anos 50 imortalizaram a imagem de marca: o cigarro High Life a fazer cama entre os lábios. Os posters e a caricatura mais emblemática, assinada por José Pragana, resistem na parede da casa de Vítor, no Sobral de Monte Agraço. Pelas 70 primaveras, por ordem do médico, Alfredo enterra a nicotina de vez. Morcego por sina e por gosto, passa a viver em pleno dos banhos de Lua quando se reforma do estaleiro naval, em 1945. O avozinho já leva mais de meio século nas pernas. O lenço que dá estilo ao pescoço e o boné enfiado são mais do que acessórios de moda pessoal – protegem a garganta e a cabeça que já não vão para novas, mas que continuam a frequentar o barbeiro por baixo do desaparecido Clube Ritz quando já passam das duas da matina. "Veja lá se o sol não lhe vai fazer mal", atirava o neto quando se passeavam às claras. "Sempre usou a mesma roupa de Inverno e de Verão. Mas no Inverno vestia ainda a gabardina. E usava sempre o lenço quando saía de casa. Começou a cantar com o lenço cruzado." A glória e queda de um homem contam-se ao ritmo do taxímetro. Os motoristas de praça são marco importante na sua longevidade e garantia de segurança nas incursões nocturnas. Briosos de carregar o fadista no banco de trás, desunham-se por uma viagem com Marceneiro e enterram o machado de guerra mal avistam a criatura. "Eram homens de bairro que não o deixavam sentir-se sozinho. Um dia na Rua das Taipas, às duas e tal da manhã, um táxi vê que é o Ti Alfredo. Quando pára e pergunta se quer boleia três táxis enfaixam-se uns nos outros. Começa grande discussão até verem que era ele. Ficou tudo bem." Da morada na Rua da Páscoa, em Campo de Ourique, desce à Igreja de Santa Isabel e vem a pé até ao Largo do Rato. Entra no carro e em dois tempos o conhecem, lançando um "boa noite, Ti Alfredo". "Nem punham o contador a marcar. 'Olhe, meu querido, vamos para o Bairro Alto mas vais pela Praça das Flores', pedia ele. Era para que a bandeirada não fosse pequena. Dava-lhes 20 escudos no final, mesmo que a corrida fosse só cinco." Em 1979, a ausência de réplica do condutor confere o receio do mestre. As gerações sucedem-se e com elas a memória perde forças para o anonimato completo. Já ninguém responde ao cumprimento. "Entra num táxi, diz boa noite, e nada. 'Viste? Estou lixado. ‘ Os seus antigos companheiros da noite já não existiam para o segurar." Alfredo só permanece sem sair de casa um ano antes de morrer, quando sente um fraquejar numa perna. Despede-se em Junho de 1982, com 94 anos, idade actualizada pelas buscas do neto que lhe situou o verdadeiro ano do nascimento em 1888. Vítor, que chegou há pouco do Canadá onde actuou para portugueses, recupera estas e outras biografias do fado em lisboanoguiness.blogs.sapo. pt, projecto criado em 2007 com o objectivo de tornar a capital portuguesa recordista do mundo enquanto a mais cantada. "Muitos poemas falam de uma mulher, a mulher Lisboa." Dedica-se ainda à investigação, num trajecto pelas memórias do fado e dos seus intérpretes ao longo dos anos, graças a muito know-how a partir da recordação, recapitulando a vida e obra dos "peões" do fado. "Encontro dados daqui, jornais antigos ali, pessoas que conheceram, etc. Estava lá sem saber que estava a assistir à história." Pouco se fazendo escutar, uma recalcada veia de actor latejou na família. O avô, personagem em tamanho grande já de si, chega a entrar na peça Fado, no Coliseu. Goza ainda de um breve apontamento, agora a cantar, num filme de António Lopes Ribeiro, nos anos 30. "Também acabei por não ser actor. Fiz apenas teatro na escola e na General Motors, mas mais tarde como realizador vivi um pouco esse papel. Há uma extroversão e um gosto." O gosto, agora pelo fado, ganhou força anímica entre a juventude de hoje, mercê de uma cultura linguística mais depurada. "As pessoas nunca deixaram de gostar de ouvir a guitarra, independentemente de gostar ou não de fado. Mas as letras ou não eram ouvidas ou achavam que era a história da desgraçadinha, quando esse não é o fado do Marceneiro." Só pelos 23 anos o próprio Vitó, seguidor da pop dos Shadows e dos Beatles, se deixou embalar pela canção, vencendo os preconceitos próprios da idade. "Até então era altamente contestatário. Ele discutia comigo. 'Este neto falta ao respeito ao avô! ‘ Também o picava. 'Brevemente vou ser engenheiro de máquinas', dizia-lhe eu. E ele respondia: 'Você que anda lá a estudar para engenheiro diga-me lá o que quer dizer boninas?"
"Sete colinas são teu colo de cetim Onde as casas são boninas espalhadas em jardim" (Lisboa Casta Princesa, Álvaro Leal/Raul Ferrão)
Vítor lá engolia os espinhos das flores. Com 12,13 anos, poemas como os de Henrique Rego, mais tarde classificados como "fabulosos", desatinavam a sua consciência revolucionária. "Vinha de um bairro operário em Alcântara. 'Bailar à mercê? Nunca vou bailar à mercê de ninguém! Disse logo. Foi uma grande luta e tanto que tenho bailado." Filho de uma costureira que morreu jovem, aos 25 anos, e do "fadista bailarino" Alfredo Duarte Júnior, antigo pintor de automóveis da General Motors, onde também vem a trabalhar, mandava em homens com idade para serem seus pais. Quando já se encontra na Fiat, o então gerente oficial conhece dois responsáveis pelo Hotel Eduardo VIL Pela amizade vêm a saber que é neto de Alfredo. Com 21 anos, começa então a desatar a voz para o fado, com carregada herança nas costas. "Passei a ir para o Galito, em Cascais, onde estava o Zé Inácio (*), que fora porteiro da Adega Machado, o Carlos Zel, etc. Não tinha aspecto mas tinha palheta. Nunca tinha tentado cantar e sentia o peso, o que o meu pai passara por ser filho do Marceneiro. Entrava no Bairro Alto e todos o conheciam. Lá cantei um fado sem saber que cantava." Depois da tropa gravou sozinho e com o avô. Trabalhou em laboratório de fotografia e realizou publicidade. Em 1979 produziu o filme que reuniu as três gerações de fado da família. Foi casado 27 anos com uma prima em segundo grau, com quem teve um filho, que a morte cedo levou. Da actual relação nasceram dois meninos, uma tardia quarta geração que vive o apelido com entusiasmo, entre sete bisnetos do mestre, "Tenho um jeito Marceneiro mas não sou o meu avô. Quem diz que o imito é cretino, porque é impossível imitá-lo. Agora, tenho o ADN do meu avô, é óbvio. Fecho os olhos e sei que ali o meu avô dava aquela voltinha." Vítor, com 64 anos, recorda com saudade a cultura peculiar do avó, de quem escreveu a biografia. Aquele saber à margem dos livros que se fecharam na quarta classe, de quem falava e escrevia com tento pontuado com a sua devida asneira, sem beliscar a língua e insistindo nos acentos tónicos, desafiando a fleuma dos interlocutores durante as entrevistas. Era preciso saber levar e saber escutar. O fadista não gostava de respostas sincopadas. E zelava por algum purismo. "Não sendo um homem retrógrado, no fim até era bastante progressista, nalgumas coisas era retrógrado como eu sou. Se me perguntarem hoje se o fado evoluiu, é claro que evoluiu, mas há uma evolução que vai até um determinado ponto e produção, que eu contesto. Por exemplo, quanto mais simples for tocado o célebre fado menor, à antiga, mais valor tem."
Do Bairro Alto até à Márcia Condessa, na Praça da Alegria, os argumentos ferviam entre gerações. Discutiam de tudo. "Tinha mais a ver com o meu avô do que com o meu pai. Fui criado com ele. Ensinou-me para nunca andar com nenhuma mulher do fado. Era lowprofile. Aliás, a ele nunca lhe conheceram namorada." Nem grande moléstia provocada pelo crivo da censura, ainda que as letras previamente aprovadas tivessem que andar num livrinho debaixo do braço quando ia actuar. Alfredo levava Vítor à revista e ao fabuloso circo no Coliseu, onde engrossavam a chamada claque. A vida não era fácil e com estes bilhetes dados bastava a obrigação de arrancar com as palmas. "A sua própria forma de estar no fado levou a que nunca se conseguisse fixar muito numa casa, daí que mais tarde diziam que andava às esmolas. Não era. Havia era muita gente que para o ouvir o gratificava.” Alfredo só não podia ouvir falar em grandes deslocações. "Nunca quis ir para fora de Lisboa, muito menos para fora de Portugal." Inventava histórias e mais histórias para não arredar pé. Em 1976 desafiaram-no para uma ida ao Coliseu do Porto – Ofereciam alto cachet e punham Mercedes e alojamento à disposição. "Às tantas pergunta-me quantas pessoas leva o Coliseu. 'Umas mil, Ti Alfredo.' Chamou-me aparte. 'Já viste? 200 contos, mais despesas, mesmo que os gajos queiram dar 50 gansos [escudos] para ver a minha tromba multiplica. É tanga! Depois não nos pagam.' Mil e um pretextos arranjados – Arranjadinhos como a merenda que levava consigo: uma carcaça com pastelinhos de bacalhau. Chegavam a ser dez, os comensais espontâneos que disputavam um bocadinho, só pelo prazer de provar a especialidade da mulher, a tia Judite, por quem se enamorou certo dia num baile na Fonte Santa.
(*) Na realidade José Inácio, que era um extraordinário Viola de acompanhamento de Fado, no Galito, tocava guitarra, e à viola estava o "Pirolito da Ericeira" este sim, tinha sido porteiro na Adega Machado, este lapso, a que jornalista é alheia, é da minha responsabilidade pois com o entusiasmo de falar destes acontecimentos poderei tê-la induzido em erro.
Considero esta entrevista, na óptica do trabalho da jornalista, muito bem feita e de um rigor exemplar. Permitam-me destacar que, Maria Ramos Silva, no decorrer da entrevista me ia fazendo perguntas/reparos muito objectivos às minhas explicações, tendo eu feito uma observação elogiosa aos seus conhecimentos de "Marceneiro" e do Fado, respondeu-me: — Vítor, para além de outras fontes, eu sou visitante assídua dos seu blogue. Fiquei muito "orgulhoso".
Sabes Zé, o meu avô ensinou-me-
QUEM MEUS FILHOS BEIJA MINHA BOCA ADOÇA
Obrigado pelo carinho que lhe dedicaste, e que ele te retribuiu.
JOSÉ PRACANA, nasceu a 18 de Março de 1946 em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores. Em 1956 veio residir para Lisboa com os pais e os irmãos
Iniciou a sua carreira artística em 1964 como fadista-amador, estatuto que sempre manteve, cantando e imitando em festas de estudantes. Frequentou várias casas de Fado-Amador que existiram no Estoril e em Cascais, onde aos fins de semana se juntava a José Carlos da Maia, Carlos Rocha, que em 1965 lhe proporciona as primeiras lições de guitarra portuguesa, João Ferreira-Rosa, António Mello Corrêa, Francisco Stoffel, João Braga, Teresa Tarouca, Carlos Guedes de Amorim, Francisco Pessoa e outros.
Em 1968 actuou pela primeira vez na RTP, num programa das Forças Armadas. Em 1969 foi ao Zip-Zip.
Em Dezembro de 1969, com Luís Vasconcellos Franco, seu conterrâneo, inaugurou o Bar de Fados Arredo, em Cascais, que dirigiu até 1972, ano em que abandonou a actividade empresarial para trabalhar na TAP onde exerceu as funções de Comissário de Bordo e de funcionário da Direcção de Relações Públicas/Relações Externas e Protocolo da TAP/Air Portugal.
Na RTP participou no Curto-Circuito em 1970, programa de Artur Agostinho e João Soares Louro. A convite da RTP produziu o programa Vamos aos Fados, em 1976, uma série de cinco programas da sua autoria. Em 1985 entrou no programa televisivo de Carlos Cruz, "Um, Dois, Três". João Maria Tudela convidou-o para a RTP em 1987, actuando em Noites de Gala. No ano seguinte Simone de Oliveira teve a mesma iniciativa no Piano Bar. Em 1991 Júlio Isidro levou-o a Regresso ao Passado. A convite da RTP-Açores fez uma série de cinco programas com o título Silêncio Que Se Vai Cantar O Fado, em 1993. No ano seguinte Herman José convidou-o para Parabéns. Em 1995, Carlos Cruz fê-lo entrar em Zona Mais. etc.
Grande admirador de José Nunes e seu seguidor no estilo em que toca guitarra, e também de Alfredo Marceneiro.
Nos últimos anos regressou aos Açores onde vive actualmente.
José Pracana nos últimos tempos tem lutado contra uma doença que tem debilitado, mas estou crente que não o irá derrotar.... E Graças a Deus não derrotou.
Felicidades “Kana”
Vitó
Para mim, escrever sobre José Pracana, melhor dizendo, o Kana, é canja. O Zé e eu conhecemo-nos numa das noites quentes do Cartola — um bar na cave do Tridente, um restaurante que ficava mesmo defronte do antigo Cinema S. José, em Cascais, no tempo em que começámos a correr para as fadistices que lá havia como se disso dependesse as nossas vidas. Lá, no Estribo, no Galito, em Caxias, mais tarde no seu Arreda, na Taverna do Embuçado, enfim, em todo e qualquer sítio onde houvesse uma guitarra, uma viola, mulheres bonitas e com bom ouvido. Depressa me apercebi, nesses primeiros encontros, de que ele tinha talento para dar e vender, além de um sentido de humor que é raro encontrar na Península Ibérica, o que é perfeitamente natural: nasceu nos Açores.
Ao Zé, conheci-lhe três paixões fundamentais: as mulheres, a boa mesa e a guitarra. E não obrigatoriamente por esta ordem. Um dos guitarristas de fado que mais me deslumbrou, desde que o escutei em casa de meus pais, tinha eu quatro, cinco anos de idade, foi José Nunes. Sei que o Kana também se encantou com a sua arte fadista e elegeu-o como farol, no que à lira diz respeito, sem que isso o impedisse de admirar mais alguns e entusiasmar-se com os seus trinados, porque o sectarismo não habita o interior do Zé, ao contrário do que é comum, desgraçadamente, à maioria dos fadistas.
Não fosse José Pracana um incorrigível amador e podia ter tido uma carreira profissional ímpar, como humorista, do género “stand-up comedy” — para usar uma terminologia pós-moderna —, numa variante composta por imitações, melhor dizendo, por caricaturas de personagens conhecidas do grande público: Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Vasco Santana, Francisco José, Vitorino Nemésio, António Ramalho Eanes, Tony de Matos, António Silva, Vicente da Câmara e até Simone de Oliveira, a Simone dos tempos em que a obrigavam, pobre dela, a ir para África entreter as tropas colonialistas. Pensando melhor, não é legítimo meter toda esta gente no caldeirão da pós-modernidade, mas como também nunca ninguém descodificou muito bem esse palavrão, ficamos assim. Começou também por tentar imitar José Nunes, mas, como já disse, inflamou-se de tal forma pelo seu tocar, que eu digo, seja a quem for, que jamais encontrei alguém que arrancasse um som tão semelhante ao do guitarrista dos olhos azuis, como o Pracana.
O Zé sempre foi e continua a ser um apaixonado pelo Fado, por todos os fados que compõem o seu acervo e que ele conhece de cor e salteado. Na voz, na guitarra, na alma, escapando à onda da irritante moda de investigação que assola a canção de Amália e de Armandinho, que ele tem passado a vida a esforçar-se em conhecer melhor, partindo em busca da razão das coisas: dentro das livrarias, dos alfarrabistas, das tascas dos bairros mais antigos de Lisboa, através dos velhos cultores do Fado, com quem ainda se cruzou, e de quem bebia a sabedoria que eles oralmente lhe transmitiam.
Um desses mestres foi Alfredo Marceneiro. O homem, além de um extraordinário fadista, era um poço de sabedoria das coisas do Fado, um genuíno catedrático de tudo quanto respeita à nossa canção. Com ele, estou certo de que o Kana aprendeu muito do que sabe, até porque o Alfredo não tinha paciência para repartir a sua sapiência com quem não mostrasse muito interesse, o que não era nitidamente o caso do Zé. Tempos houve em que quando se via um sabia-se que o outro estava por perto, eram inseparáveis e o Kana possui um tal repertório de histórias dele e com ele que se Portugal fosse um outro país a esta hora já estariam reunidas em livro, para uma história do Fado — sem compadrios nem exclusões.
Inseparáveis também, ou quase, fomos e somos eu e o Kana, ainda com mais episódios de vida partilhados, no Fado, na tropa, na boémia, embora neste caso com edição de duvidoso gosto. Haveria muito mais para dizer, infinitamente mais para contar mas, afinal, é muito mais difícil do que eu julgava escrever sobre uma pessoa a quem dedicamos uma tão grande amizade.
Lisboa, 14 de Julho de 2008
Esta página já tinha sido publicada neste blogue em 14 de Julho de 2008.
Comemora-se este ano os 120 anos do nascimento de Alfredo Marceneiro - 1891 - 1982
Como já explicitei quer em livros quer nos blogues, Alfredo Rodrigo Duarte, vulgo Alfredo Marceneiro, na realidade nasceu em 1888, a 29 de Fevereiro, mas só foi registado em 1891, este facto deveu-se a dificuldades financeiras de seus pais ( facto muito comum na época), e quando tiveram a oportunidade de o baptizar, corria o ano de 1891, como não era um ano bissexto, portanto não havia 29 dias, optaram pelo dia 25 de Fevereiro.
A Editora Ovação e a FNAC, decidiram lancar um produto alusivo à efeméride, e convidaram-me a incluir no mesmo um pequeno livro sobre o meu avô, em conjunto com o DVD - Alfredo Maceneiró - Três Gerações de Fado, e o CD - Marceneiro...É só Fado.
Propus dar ao "produto" o título ALFREDO MARCENEIO "O Patriarca do Fado", o que foi aceite, achei que teria de explicar o porquê do epíteto no inicio do livro e que passo a trancrever:
ALFREDO MARCENEIRO
“PATRIARCA DO FADO”
Raro será o português que se não tenha interrogado acerca do fascínio que o Fado exerce sobre si. Verifica-se que o mesmo acontece com os muitos estrangeiros de diversas partes do mundo, com culturas, etnias e credos diferentes dos nossos, que ao assistirem a essa entrega sublime do cantador que nos transmite para além da sonoridade da voz, da expressão facial, do gesticular do corpo, uma melopeia acompanhada por uma parelha de músicos “guitarras e violas”, que nos provoca nostalgia, amor, ódio, ciúme, alegria, que provoca o ritmo acelerado do coração, enquanto na alma desabrocham sentimentos, que extravasam as barreiras linguísticas, e as almas irmanam-se.
O Fado está cheio de símbolos. Os símbolos são gerados pelo povo, sejam políticos ou militares, sejam sábios ou médicos, sejam músicos ou cantores. É o povo o grande juiz: eleva os ídolos quando lhe agradam, os venera quando tal merecem; Mas também é o mesmo povo que os ignora quando são falsos.
No universo da expressão musical, o Fado é um mundo dentro de outro mundo, é um universo de cantigas onde cabem, a dor, a saudade, o entusiasmo, a fé, a esperança... O Fado é uma “seita” com os seus ritos, os seus segredos…
Será talvez uma afirmação sacrílega esta de vos dar como título a este livro:
Alfredo Marceneiro – Patriarca do Fado.
Na “Catedral do Fado” há um sentir que nos leva muitas vezes à lágrima, tal qual “água benta”, como a que tocamos, na saudação de respeito, que nos motiva ao cruzar os umbrais de uma outra qualquer "Catedral"; também no Fado, há um ritual, um estado de alma... que veneramos e respeitamos.
Se alguém entendeu todo este ritual foi decerto Alfredo Duarte, o Marceneiro, por ofício.
Se os prosélitos do Fado entenderem perpetuar a sua bandeira - O Fado genuíno - , que seja relembrando a sua obra, a sua dádiva ao Fado. Alfredo Marceneiro nunca seapelidou, nem deixou que o apelidassem, Rei do Fado, mas foi, sem sombra de dúvidas, o seu mais louvado príncipe, tão igual ao Povo que com ele se confundiu amavelmente.
Alfredo tu foste/és o “ Patriarca do Fado
Amália com esta frase lapidar, demonstrou a sua veneração por ele:
Alfredo... tu és o Fado
Fado "O Remorso"
Com letra de Linhares Barbosa e música da sua marcha, Marceneiro canta-nos este poema, que lhe valeu a Medalha de Ouro, num concurso de Fado, destacando-se a forma de dividir o verso, como ele nos explica no inicio do Fado.
Recebi estes versos de homenagem a Alfredo Marceneiro, que se baseiam neste tema, ao seu autor, o meu muito obrigado.