Clique aqui para se inscrever na
Associação Cultural de Fado

"O Patriarca do Fado"
Terça-feira, 25 de Fevereiro de 2014

ALFREDO MARCENEIRO - Baptizado a 25 de FEVEREIRO 1891

 

 

O MOSTEIRO DOS DUARTES

Raro será o português que se não tenha interrogado acerca do fascínio que o Fado exerce sobre si. Outro tanto acontecerá com os estrangeiros que assistam a essa entrega sublime de um cantador gemebundo, acolitado por uma parelha de guitarras, que faz ouvir uma melopeia nostálgica, que nos devora a alma. Saiba-se que a guitarra é um feixe de cordas, que tangidas sobre um ataúde sem cabeceira faz chorar infantas das espanhas mesmo em festas de núpcias, quer por angústia, quer por boa-memória.
E se cada um busca as suas respostas e os eruditos se embrenham na demanda das origens deste planger balsâmico, eu quedo-me pelo meu tempo e, mais modestamente, pelos fadistas que acontecem.
Se o acalanto se escuta inconscientemente desde que uma mãe entende embalar carinhosamente um filho para que adormeça e ninguém lhe escritura as notas musicais improvisadas ou o compasso da ladainha sonolento, não me dá cuidado conhecer que génios e magos se combinaram para criar uma toada dolente que me mantém desperto e acaricia delicadamente os sentidos. A cadência sei que se casa com o pulsar de um coração dorido de muitos desgostos mas esperançado em ressurreições.
Há sempre um poeta apaixonado em contá-las numa linguagem rimada. E quem oficie mergulhado no seu próprio íntimo, numa treva densa onde só o penitente sabe onde encontrar a sua pedra filosofal, os dedos cegos acordando ecos nas guitarras, o Senhor das Queixas ditando com fervor outra oração a exorcismar mal--nenhum.
Que confissão sacrílega tem sido esta para vos dizer, no final, ao que venho?
Pouca coisa para o muito que ides ler sobre os "Duartes". Na verdade, para atravessar os portais de um templo há que se persignar, tomar água benta de uma lágrima de compunção e murmurar a convencional saudação. Assim fiz, na certeza que cruzava os umbrais de uma "Catedral". Não importa o altar a que me dirigi para que a atitude tivesse sido diferente. Está feito!
Se alguém entendeu todo este ritual foi Alfredo Duarte, o Marceneiro, por ofício.
Escutando-o a cumprir seu culto, senti-me ungido de graça em
várias ocasiões. Mas não me cabe a mim fazer o responso a um Homem que era a resposta para todo o encantamento do Fado. Quem, vos dirá com correcção será um pupilo dessa linhagem que sente a responsabilidade, legítima aliás, de contar como foi belo adormecer e acordar na toada de um terço de harmoniosos lamentos; como sucedeu singular e deslumbrante a aventura fantástica de conviver com o castiço beato; como foi trágico depor-lhe sobre as mãos de expressão já ausente as últimas violetas e acompanhá-lo à entrada de uma madrugada fria e sem regresso.
Todos estes atributos que o contador de histórias reuniu para nós, fá-lo-iam retomar a peregrinação interrompida do avô e cantar, também, porque herdou timbre de fácil comunicação. Mas antes quer ditar para um missal novo a mística de todos os dias: — o legado de Alfredo Marceneiro, muito mais que colchetes de oiro, a generosa estilização da nossa cantiga de rua, género que o distinguiu, nobilitou e deixou para usufruto de todos os seus admiradores.
Depois de ler os assentos de Vítor Duarte, o neto do Marceneiro, o Fado será mais seu, caro leitor, e entendê-lo-á como o dialecto íntimo que os lusitanos comunicam em louvor da alma nacional que nos coube.
Conheci o Vítor em 61 teria ele apenas 16 anos. Ultimávamos, então, a decoração do Timpanas, em Alcântara, para uma abertura arrastada para Setembro.
Apesar da pouca idade ele mostrava bem saber o que queria e, sem recorrer a quaisquer recomendações tão ajeito desta sociedade, propôs-se ser o "fotógrafo" da Casa. Eu não conhecia nada dessa actividade ou resultados de negócio, mas agradava-me tê-lo como visita frequente, de tal forma me impressionava o seu interesse pelo fado - que considerei como bom auspício a anular os receios de desastre no empreendimento.
Só mais tarde soube que se tratava do neto querido do ancião Mestre. Registava em película virgem dramas humanos em forma de imagem, instantâneos de saudade súbita e lassidões sem tempo de retorno, tudo porque não sabia ainda arrumar na garganta as coisas que havia de contar um dia em canções de tormento e amor. O Vítor movia-se no Timpanas como se fosse um de nós, eu ou meu irmão. Escutávamos-lhe as opiniões e ganhámos-lhe até afeição, fazendo-o eu, confidente de outras empresas. Uma das qualidades que lhe apreciava era a dedicação ao Avô que ele, a olhos vistos, lhe retribuía com muito carinho, sendo poucas as noites em que o idoso boémio o não vinha visitar, lá para as tantas.
Em muito serão se juntaram as três gerações, quando o Alfredo Duarte Júnior aparecia com o seu grupo e o malogrado irmão, o Carlos, vinha da casa ao lado, a Cesária, cheirar a nossa sala composta. Acrescentava-se o poeta João Linhares Barbosa e o Fado, nessa noite, não tinha outra morada que não fosse a mesa onde apostavam forte os seus reais talentos.
Por brincadeira o Vítor imitava respeitosamente o Avô aproveitando a sua bênção e satisfação e, assim, se revelou um lídimo representante da casa dos "Duartes". Contudo, noutras interpretações, não precisava plagiar estilos e desfiava, sílaba a sílaba, o mais bem acentuado dos poemas numa cadência e inflexões perfeitas. Ia a todos os tércios, como na gíria se dizia, não sei se bem se mal.
Surpreendia-me que ele não ousasse uma carreira profissional quando toda a alquimia do fado lhe era tão familiar, ou melhor, lhe estava nos ossos.
Em trinta anos de muitas e agitadas ocorrências não perdi de vista este meu amigo.
Continuou celebrando o Avô como um purpurado e não cuidava de se afirmar, ele próprio, não enjeitando o dom congénito mas mostrando a sua autoridade em saber partir as palavras, saboreá-las, intencioná-las, fazendo-as luzir e resplandecer no destino da mensagem dos versos que dizia. Mas agora, escreve.
Escreve como quem transmite o testemunho numa estafeta sem fim. Tudo quanto a sua lembrança guarda de muitas jornadas e serões com o Avô, ele fixa em letra de forma para a posteridade.
Se os prosélitos do Fado entenderem devotar uma longa noite à sua bandeira, que seja o 25 de Fevereiro pois, sem dúvida, no ano de 1891 nasceu o seu mais louvado príncipe, tão igual ao Povo que com ele se confundiu amavelmente.
Deste universo descrito e cujo epílogo conhecem, bem podem aceitar que a prosa veio do coração de Vítor Duarte e vale por isso.
rui forjaz 25/03/95 in: Prefácio do livro biográfico "Recordar Alfredo Marceneiro"

 

Nota: Como já esclareci, após aprofundada investigação, posso afirmar que Alfredo Marceneiro na realidade nasceu  a 29 de Fevereiro de 1888, portanto em ano bissexto, mas só foi registado a 25 de Fevereiro de 1891

Licença Creative Commons
Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional, assim como registo na Sociedade Portuguesa de Autores, sócio nº 125820, e Alfredo Marceneiro é registado como marca nacional no INIP, n.º 495150.
Viva Lisboa: Que saudades
publicado por Vítor Marceneiro às 00:00
link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito
Clique na Foto para ver o meu perfil!

arquivos

Junho 2022

Fevereiro 2022

Agosto 2021

Maio 2021

Fevereiro 2021

Maio 2020

Março 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Agosto 2019

Julho 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Fevereiro 2019

Novembro 2018

Outubro 2018

Agosto 2018

Dezembro 2017

Outubro 2017

Agosto 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Fevereiro 2016

Janeiro 2016

Dezembro 2015

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Junho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Novembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Junho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Agosto 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Maio 2010

Abril 2010

Março 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Outubro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Maio 2009

Abril 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Outubro 2008

Setembro 2008

Agosto 2008

Julho 2008

Junho 2008

Maio 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Dezembro 2007

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Março 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Aguarelas gentilmente cedidas por MESTRE REAL BORDALO. Proibida a sua reprodução.

tags

10 anos de saudade

2008

50 anos de televisão

a severa

ada de castro

adega machado

adelina ramos

alberto ribeiro

alcindo de carvalho

alcino frazão

aldina duarte

alfredo correeiro

alfredo duarte jr

alfredo duarte jr.

alfredo duarte júnior

alfredo marcemeiro

alfredo marceneiro

alice maria

amália

amália no luso

amália rodrigues

américo pereira

amigos

ana rosmaninho

angra do heroísmo

anita guerreiro

antónio dos santos

antónio melo correia

antónio parreira

argentina santos

armanda ferreira

armandinho

armando boaventura

armando machado

arménio de melo - guitarrista

artur ribeiro

beatriz costa

beatriz da conceição

berta cardoso

carlos conde

carlos escobar

carlos zel

dia da mãe

dia do trabalhador

euclides cavaco

fadista

fadista bailarino

fado

fado bailado

fados da minha vida

fados de lisboa

feira da ladra

fernando farinha

fernando maurício

fernando pinto ribeiro

florência

gabino ferreira

guitarra portuguesa

guitarrista

helena sarmento

hermínia silva

herminia silva

joão braga

josé afonso

júlia florista

linhares barbosa

lisboa

lisboa no guiness

lucília do carmo

magusto

manuel fernandes

marchas populares

maria da fé

maria josé praça

maria teresa de noronha

max

mercado da ribeira

miguel ramos

noites de s. bento

oficios de rua

óleos real bordalo

paquito

patriarca do fado

poeta e escritor

porta de s. vicente ou da mouraria

pregões de lisboa

raul nery

real bordalo

santo antónio de lisboa

santos populares

são martinho

teresa silva carvalho

tereza tarouca

tristão da silva

vasco rafael

vítor duarte marceneiro

vitor duarte marceneiro

vítor marceneiro

vitor marceneiro

zeca afonso

todas as tags