Faz hoje 40 anos que o 1º Programa de Televisão sobre a figura de Alfredo Marceneiro, foi transmitido.
Alfredo Marceneiro canta no Programa da RTP em 1969
É tão bom ser pequenino
Letra: Carlos Conde
Música: Fado Corrido
Diário de Lisboa 2 de Dezembro de 1969 por Mário Castrim:
DUAS HORAS DE FADO. OS PORTUGUESES NÃO SÃO APENAS «CASTOS»: SÃO TAMBÉM RESISTENTES
Marceneiro, o Marceneiro fadista, chegou aos 77 anos para ter na Televisão portuguesa um programa dedicado à sua arte de «dizer» o fado. Tardou mas arrecadou — se tivermos em atenção o tempo do programa: duas horas onde muito o ouvimos cantar e alguma coisa (contrafeitamente) o ouvimos falar. «Marceneiro é só fado» e era uma canastra com um quarteirão de cantigas alfacinhas. A meia-noite, que soou precisamente no fim, marcou mais do que o fim do programa: marcou o fim de um fadista; marcou o fim de uma escola, marcou o fim de uma época…
Tardou — e não arrecadou. Marceneiro aos 77 anos não é mais do que uma sombra de si próprio. Ele já não pode sustentar uma «volta», manter a décima do corrido sem vir acima respirar, «swingar» de forma convincente como só ele sabia desdobrar, prolongar, alongar uma palavra para além dela própria, segurar o fim do versos quando já todos pensavam que o verso havia acabado. Aos 77 anos isso já não é possível. Quando muito é possível exemplificar o processo. Foi o que fez Alfredo Marceneiro. De pouco mais se pode entender o programa dedicado ao fadista para além da sua homenagem. Homenagem quase póstuma. O Marceneiro na plena posse das suas qualidades, passo à história. É, como se costuma «dizer uma relíquia».
II
O programa não foi longo: foi comprido. Um deserto com os oásis das interpretações do Marceneiro. Os mesmos tiques repetido exaustivamente: o fumo, a noite, a mesa com os amigos, as figuras indistintas a moverem-se na semi-obscuridade, a assistência falsamente entusiasmada.
Da pessoa de Marceneiro, da sua pessoa em vivo, quase nada chegou até nós. Os grandes planos tiveram piedade do real. Mas a verdade pode ser piedosa, pois se nega como verdade. Raramente o fadista foi apanhado desprevenido e a culpa não poderá ser levada á conta da extrema prudência do homenageado
Tudela, que nos deu já algumas reportagens tão curiosas, não conseguiu imprimir um mínimo de interesse, de autenticidade, ás imagens que escolheu para enquadrar o fadista ou para acompanhar as suas interpretações. A realização de Luís Andrade foi excessivamente primária excessivamente «meia bola e força». Não se pode fazer uma obra de arte apenas como o saber burocraticamente adquirido. É preciso ir além: pôr em tudo o que se faz o que se aprendeu e o que não se aprendeu, especialmente isto. Isto, ou seja: o que faz a riqueza, o lume a razão de um Augusto Cabrita, a sua capacidade para apanhar, num golpe de asa, perdão num golpe de câmara, o apontamento significativo, o gesto inicial.
Na criação artística (como em qualquer aspecto de criação) não pode haver pressa. Não pode haver prazos marcados. Não se apressem não vale a pena: todos nãos precisamos de nove meses para nascer. O caçador tem de, pacientemente, aguardar o instante, aquele instante, e não outro mais nenhum, de puxar o gatilho revelador.
Aparentemente ordenadinho e arrumadinho o documentário sobre resultou em verdadeira compota. Quantas vezes nos veio à memória o filme «Belarmino» com as suas expressões que ultrapassavam as palavras, com os seus silêncios a formar com as palavras um corpo único…
III
É verdade: não se compreende muito bem a inclusão de Amália Rodrigues, com tamanha insistência, no documentário-espectáculo. Para quê a concorrência no estrelato? Para quê dois galos na mesma capoeira? Se a festa era do Marceneiro que foi lá a Amália fazer? Não é situação agradável nem para um nem para o outro. Alguém se recorda de Marceneiro em qualquer das telefitas dedicadas à Amália Rodrigues? Será que nos domínios do Fado nada se poderá fazer sem o beneplácito ou a bênção da suserana?
Em 16 de Abril de 2007, numa página que escrevi sobre a saudosa Lucília do Carlos, escrevi o seguinte:
Sempre tive por Lucília do Carmo, desde muito miúdo, uma ternura muito especial, devido não só à sua simpatia para comigo, mas também pela grande amizade que ela e seu companheiro, Alfredo de Almeida, tiveram com o meu avô, o que era recíproco.
No início da abertura da Adega da Lucília, os tempos eram difíceis e Marceneiro nunca deixou de aparecer e colaborar, o que contribuiu para o êxito da casa, mesmo sem nunca ter ser sido contratado.
Mais tarde, com a passagem para “O Faia”, Marceneiro era presença obrigatória ao final da noite, que passa a ser o seu “poiso” preferido, o que se torna do conhecimento dos seus admiradores que ali afluem na mira de o ouvir cantar, o que sempre acontecia, também sem que nunca tenha contratado. Carlos do Carmo começa a interessar-se pelo Fado e tem ali à mão de semear o Mestre. Inteligentemente sabe ouvir e assimila. Afirmo-o porque sei e o próprio muitas vezes, também o afirmou. Carlos do Carmo grava em disco com a benesse de Marceneiro, alguns dos seus fados mais emblemáticos - Fado Bailado, A Viela, etc. -.
Após a realização do documentário “Marceneiro é só Fado” para RTP, e cujos interiores foram filmados n’O Faia, e em que Carlos do Carmo se assume como produtor, Marceneiro deixa de entrar n’O Faia, porque alguém lhe diz que seria considerado “persona non grata”. [Um dia contarei estes acontecimentos, que eu esperava que fossem contados por outros, que não por mim, mas há uma quantidade de investigadores e conhecedores do Fado que infelizmente só falam quando têm público que não os poderá contestar].
A amizade com a Lucília mantém-se como sempre e talvez mais reforçada! (estranho?...) Lucília que não tem nada a ver com o assunto, mas que muito a magoa, e como deixa de ter como já vinha sendo hábito hà vários anos, o amigo Marceneiro a seu lado no (seu?) restaurante, visita-o na sua casa pelo menos de 15 em 15 dias sempre ao final da tarde, levando sempre um miminho, quer para ele, quer para a minha avó, a “Ti Judite”.
No último ano da sua vida, meu avô fica acamado e Lucília até à hora da sua morte não deixa de o visitar semanalmente.
Continuei a conviver com a Lucília do Carmo quer depois do falecimento do meu avô, quer após a sua retirada artística.
Guardo uma recordação de grande ternura por esta grande Mulher (com M maiúsculo).
Infelizmente não pude retribuir-lhe, quando ficou acamada as visitas que fez ao meu avô, por pedido do filho. [Uma história para também contar mais tarde].
Lucília morre e infelizmente estou fora de Portugal.
Acabo se me permitem com um ditado popular que o meu avô incutiu no meu espírito e na minha formação, e acho que tenho dado mostras que não me esqueci: “QUEM MEUS FILHOS BEIJA MINHA BOCA ADOÇA”, Lucília do Carmo tem um lugar muito especial no meu coração.
Vítor Duarte (Marceneiro)