Foto montagem Amália no Panteão
© Vítor Duarte Marceneiro
A 23 de Julho Amália faria 88 anos
Transladação
Amália é do Povo
Amália repousa finalmente no Panteão Nacional. A grande senhora do fado, a mulher do povo, a voz de Portugal descansa desde ontem [dia 8 de Julho de 2001] na sua última morada. Os restos mortais da fadista foram depositados na Sala de Língua Portuguesa, junto a figuras célebres da nossa cultura como Guerra Junqueiro, Camilo Castelo Branco e João de Deus. Numa homenagem nacional, a trasladação do corpo da diva do fado do Cemitério dos Prazeres para o monumento, decorreu como se de um funeral se tratasse. Centenas de pessoas não arredaram pé dos locais por onde a urna iria passar. A Rua de S. Bento (onde Amália viveu nos últimos anos) era das mais aguardadas.
Contudo, os ânimos exaltaram-se quando o povo se apercebeu que o carro funerário, escoltado por nove motos da divisão de trânsito da PSP, sob o comando do capitão João Cartaxo, não iria parar o tempo necessário para poderem prestar uma última homenagem à fadista. Apenas conseguiram atirar pétalas de rosa, acenar com lenços brancos e gritar: "Amália, Amália, Amália". Diga-se em abono da verdade que o trajecto do cemitério até ao Panteão mais parecia uma maratona, quase impossibilitando que se seguisse o veículo. Mas houve quem o tenha conseguido. Um idoso, de fato e gravata, seguiu o carro funerário numa bicicleta, mostrando que a sua devoção a Amália é maior do que o peso da sua idade. No nº 193, onde Amália viveu até 6 de Outubro de 1999, as janelas estavam fechadas mas a fadista era representada por um xaile preto e uma rosa branca pendurados na varanda. Entretanto, já no Panteão, os populares juntavam-se e tentavam ultrapassar o gradeamento e a barreira policial, localizada no cima da escadaria do monumento, na tentativa de ver mais de perto o caixão coberto com a Bandeira Nacional. No momento, os privilegiados eram individualidades do mundo do espectáculo e da política, familiares, amigos e comunicação social.
"Manifestação de saudade"
António Guterres, sentado ao lado de Almeida Santos, falou ao Correio da Manhã, para acentuar que a homenagem se tratava "de uma manifestação de saudade". "É impossível vê-la e ouvi-la - a não ser pelos discos que temos em casa -, mas a sua presença faz falta a todos os portugueses", disse. Ao som do Coro dos Antigos Orfeonistas da Universidade de Coimbra, acompanhados por um grupo de guitarras (Raul Nery, Fontes Rocha, José Luís Nobre Costa e Pinto Varela) e violas (Joel Pina, Francisco Perez Andion, Jorge Fernando, Lelo Nogueira e
Seguiu-se a interpretação de fados da cantora como "Estranha Forma de Vida", "Ai Mouraria", "Fado do Ciúme", "Lisboa Não Sejas Francesa", "Povo Que Lavas no Rio" e "Fado Malhoa". O Hino Nacional ecoou então pela zona envolvente do Panteão, num momento arrepiante em que as lágrimas voltaram a rolar. Posto isto, Jorge Sampaio usou da palavra e discursou de forma emocionada, mas simples (ver caixa). Mais uma vez, a música soou, mas o tempo urgia e era chegada a altura de Amália ser recebida pelo Panteão Nacional - a urna foi depositada na sala tumular, aberta pouco depois aos populares, para, posteriormente, ser conduzida à Sala da Língua Portuguesa, onde durante a noite se procedeu à selagem do túmulo.
Opiniões divergem
As opiniões sobre a trasladação dos restos mortais de Amália foram contraditórias. Durante a cerimónia religiosa, no cemitério (ver caixa), podiam ouvir-se comentários como "Amália é do povo, devia estar junto do povo", "Amália deve ir para o Panteão por ser um símbolo de Portugal" ou, ainda, "Quem é que pode estar a pagar 400 escudos por cada visita?" Quando questionado sobre esse mesmo pagamento, o primeiro-ministro salientou ao CM que a quantia era "para ver o Museu". "Mas os devotos de Amália podem visitar o seu túmulo gratuitamente todos os domingos de manhã, nos aniversários (nascimento e morte) e no Dia de Todos os Santos", explicou.
"Deusa, Musa, Genial"
A homenagem nacional iniciou-se por volta das 09h00, quando os restos mortais da diva do fado foram retirados do gavetão e levados para o interior da capela do Cemitério dos Prazeres. A manhã ainda estava a começar mas as pessoas já rumavam ao local. Quando por volta das 14h15, as portas se abriram e, pela primeira vez desde 8 de Outubro de 1999, se viu a urna de Amália, vozes se ergueram e o nome da fadista ecoou nos claustros da capela. A entrada fez-se, ordeiramente, com responsáveis da agência Magno a coordenarem a movimentação do povo que queria chegar junto à urna ladeada por quatro guardas-de-honra. Para quem esperava uma enchente de curiosos, seguidores, admiradores, familiares, amigos e figuras públicas, enganou-se. Pelo menos, à hora de abertura das portas. A razão para a fraca afluência no início da homenagem deveu-se sobretudo à intenção da população em dividir-se entre a cerimónia religiosa no cemitério e as oficiais no Panteão Nacional. Ainda cá fora, antes da abertura das portas, o Correio da Manhã conseguiu falar com D. Filipina, mulher do irmão mais velho de Amália, Vicente, que, segundo a viúva, "morreu três meses depois" da diva por causa "do desgosto".
Emocionada e expectante, D. Filipina aguardava que a capela fosse aberta ao público e foi frisando que a família estava feliz com tudo o que estava a acontecer. "Penso que ela vai para o lugar certo onde pode ser admirada", disse, acrescentando que a trasladação já devia ter acontecido. No interior da capela, fados de Amália passavam de boca em boca, como que quisessem espantar a emoção, a dor, as lágrimas. Até o "Malhão, Malhão" foi incluído no repertório dos presentes. Durante as horas que antecederam a cerimónia religiosa, os populares ocuparam o tempo a distribuir poemas, letras das músicas da diva e até houve quem trouxesse para o local sagrado um rádio para ouvir a grande voz. Junto à urna, ainda dentro da capela, as pessoas deixaram ramos de flores e até um livro com poemas de Ary dos Santos, Natália Correia e Pablo Neruda. No livro das condolências, podiam ver-se assinaturas de familiares, amigos e simples admiradores, residentes no País e no estrangeiro. Cá fora, Joaquim Geada, um fã de Amália, segurava apático uma Bandeira Nacional com a inscrição: "Deusa, Musa, Genial. Serás eternamente a voz de Portugal". Empregado de mesa, serviu a fadista, em Luanda, em 1970, e depois teve "a honra" de lhe oferecer flores por quatro vezes. Um gesto que a morte de Amália não travou.
Texto de Rita Montenegro, publicado no Correio da Manhã - 09 de Julho de 2001
Em 1940 escrevia-se assim sobre Amália
Jornal “Canção do Sul” de 1 de Março de 1940, assinava João Reis
Amália Rodrigues
O Rouxinol da Beira Baixa
Onde quer que se encontre Amália Rodrigues, cantando, logo uma multidão de apreciadores de bom fado a vai escutar, cativada por aquela “vózinha” sã, essencialmente castiça e tocada milagrosamente do saudosismo antigo, que, a despeito das canções modernas, ainda é a graça que enche os corações e completa as almas, hoje em dia a viverem quase que totalmente esvaziadas do bom sentimento fadista.
O público, embora juiz do seu gosto, senão do seu apuro artístico, é também o advogado omnisciente que defende ou ataca os seus artistas, e ele, que classificou Amália Rodrigues, como um novo rouxinol (o rouxinol da Beira Baixa) não se enganou.
Sim não se enganou!
Não há possíveis enganos quando o coração fala. Os olhos tantas vezes iludem. Mas a sístole e a diástole são sinetas que dão o rebate autêntico. Pois, meus senhores, quantas vezes será preciso dizer que o coração é a bitola do fado?
Amália Rodrigues canta o fado antigo, só o fado antigo. Exprime-o com aquela ternura entusiástica que bule nos nervos, dos mais insensíveis. A seu lado até a guitarra, de acordes nervosos, já de si, é tomada de outros nervos, mais vibráteis. Depois a cadência da sua voz, de ritmo fiel, inabalável, é de uma perfeição quase absoluta (passe o rigor da apreciação).
Perfeições na espécie humana não existem. Mas, com 19 anos, (tantas são as primaveras de Amália Rodrigues) — algo de definitivo já poderemos decifrar.
Ela, quando contrariou seus pais, para seguir a profissão fadista, não tomou melhor o prognóstico — embora a si se relacionasse — do que nós, simples espectador-jornalista. Assim, firmes na pratica de que dispomos, estamos autorizados a afirmar que Amália Rodrigues - é uma novel mas já grande cantadeira. Novel porque, tem o cartão desde Julho de 1939 — grande cantadeira porque as suas qualidades artísticas. São de modo. a merecer este adjectivo.
Quem nos haveria de predizer que aquela rapariga que tomou parte no “Concurso da Primavera” (exclusivamente nos ensaios) — alcançaria com tanto fulgor e rapidez um lugar de destaque entre as modernas fadistas! Só nos explicaria o valor de que ela fora nimbada pelo Destino! Só, esse misterioso Destino nos esmiuçaria das razões das voltas que o mundo dá...
E talvez esse Deus cego nos desse conta da nossa paixão pelo fado. Talvez esse enigma dissesse que a palma da ventura era outorgada pela sua mão àqueles que não o contrariam.
E talvez essa esfinge mitológica concluísse com razões de sobra que a aura de Amália Rodrigues é fruto da sua confiança no Destino.. Talvez...
Amália Rodrigues tinha de ser artista, não o contrariou e...venceu ...
A Ronda dos Bairros
Letra de: Francisco dos Santos
Sentindo-me fadista e reforçando a amarra
Que prende no meu peito a sensibilidade,
Sobraçando, contentei uma velha guitarra
De noite percorri os bairros da cidade.
Em todos eu cantei uma trova de amor
Em Alfama, Madragoa, em Alcantara e por Belém,
Subi a velha Graça, o bairro sonhador,
Aonde o fado vibra eternamente bem.
Eu quis saber assim onde melhor cantava
Unida a convulsão da minha nostalgia.
E ás quatro da manhã eu reparei que estava
Junto de uma capela, ali na Mouraria!
Senhora da Saúde, a santinha benquista,
Parece que escutou a trova que cantei
Senti-me mais mulher, senti-me mais fadista,
Na velha Mouraria aonde o fado é lei ...