Alguém profetizava em 1955:
DAQUI A CEM ANOS OS PALCOS REPRESENTARÃO A VIDA DA AMÁLIA COMO AGORA SE FAZ À SEVERA
Mas não foi preciso tanto tempo, enquanto na história da Severa, os dados poderão ser pouco rigorosos, porque não temos fotos e pouca documentação. No caso das histórias de Amália, que foi nossa contemporânea, penso que seja de lamentar, que havendo tantas recordações, relativamente ainda recentes, como a sua casa transformada em museu, e com tantos biógrafos, como é possível que cometam tantos erros…???!!!
Amália um dia disse: Quando eu morrer muita coisa se irá inventar e deturpar a meu respeito.
AMÁLIA...
A Última Severa
Lisboa gosta muito que lhe contem histórias da sua história.
Na galeria dos grandes amores de Portugal, a Severa e o Marialva pertencem à história da Cidade, passando contados de pais a filhos, e destes, a netos e bisnetos, como do mais enternecedor e pitoresco. O Marialva é o homem poderoso, varonil, dominador de toiros e conquistador dos salões; á fidalgo de boa estirpe e de primeira água: A Severa, erva da rua, mulher com ascendência de ciganagem, nada mais tem para se fazer valer do que a preponderância da graça da sua graça. De lume nos olhos e uma voz de estúrdia para cantar a melodia plangente e fatalista dos que choram, sofrem e gemem.
Através de um século, aparece-nos este par apaixonado, em crónicas, romances e cantigas, onde a imaginação popular se recreia e se encarna com obsessão e encanto. Não importa saber até que ponto o facto foi verdadeiro ou imaginário. É uma história bonita e apaixonada, dum fidalgo por uma
Fadista.
Ao teatro chegou esta efabulação, Júlio Dantas escreveu um drama sobre o tema, depois um romance e ainda, e a seguir, foi adaptada uma opereta.
Milhentas vezes se tem aberto a cortina dos proscénios para a Severa passar de braço dado com o Marialva, travando o diálogo fatal:
— Severa!
— Meu amor, se tu não viesses eu morria.
Com estes episódios romanceados tem vibrado as multidões em delírio, como crónica sentimental. Ângela Pinto, Palmira Bastos, Ester Leão, Emília de Oliveira, Júlia Mendes, Alice Gomes, Maria Emília Ferreira, Maria Clementina, Rafaela Haro e Dina Tereza — grandes nomes da cena — encarnaram a figura que ficou assinalada.
Mas isto foi no passado. Hoje, a cidade de Lisboa tinha de ter a Severa do nosso tempo. Um nome só a escolher — AMÁLIA. A última Severa que o público vê é pois Amália Rodrigues.
O Monumental é um teatro feito neste dobrar de meio século. É portanto o palco mais jovem do burgo. Também seria digno para o empreendimento. Possui imponência arquitectónica e o conforto da arte funcional. Cristais facetados e incandescentes, veludos, sedas e doirados conjugaram-se em propensão e deslumbramento para erguer num trono de glória à fadista Amália Rodrigues, que vai subir mais um degrau da fama.
Na crónica do grande mundo social todos marcaram a data com pedra branca.
A sala do teatro do Saldanha regurgita em solenidade grande. Os maiores nomes da política, da finança e da arte. É a mesma fina-flor da Lisboa de 1955 que se rendeu e assistiu deslumbrada, ainda não há muito, ao casamento, em Cascais, da Princesa Maria Pia de Sabóia. E agora aqui se encontra de novo.
Três pancadas surdas com a luz apagada. Lentamente o drapejado cor de mel claro sobe. Uma cortina de linhagem, pintada por Manuel Lima com as figuras do drama, afasta se para deixar ver a cena. Claridade. Andam dum lado para o outro com entradas os boleeiros e as amásias, vivendo um mundo lendário. Esboça-se o conflito. Numa adega da Lisboa Velha... Num balcão de baiuca... E o caso complica-se. Eis a Severa que chega. Vem de vermelho labareda, esfuziante como água childra, dá gargalhadas de rainha do seu meio, entre chofras de rufiões e graça das marafonas. Vem de vermelho, sim. E estão com ela o Timpanas, o Roque, o Diogo e tantos mais que as pedras das vielas do Capelão conhecem e reconhecem. Amália canta. Amália é a Severa. Mas não sabemos diferenciar onde começa uma e acaba outra. Uma Severa amalista, bela, castiça, com a voz orvalhada de emoções. Viu o Marialva a tourear. E o coração ao pé da boca sai em catadupas de gritos e ais. Não podemos concluir se é riso ou se é pranto. De resto, a voz de Amália reflecte esse estado de feição.
Agora, depois, estamos numa casa da Mouraria. Ao fundo, o bairro da Senhora da Saúde desenha-se em sombras. Entra pela porta da rua uma rascoa a pedir socorro. È a pobre da Chica espancada pelo Roque. A Severa desanca o rufia e protege a débil que juntamente com o Custódio preenchem o amplexo carinhoso que a fadista tem pelos humildes.
O Conde é nobre, forte, valente. Mas tem ciúmes do Custódio. Há brigas e traições onde o Romão e o Custódio fazem tingir de sangue as vielas e as alfurjas do bairro típico.
Cai o pano com os trinados da Mouraria.
O outro acto é o da toirada. Amália vem de branco. Traz um cravo rubro no cabelo de azeviche e atira a chinela mais alta do que a vedação da praça de toiros.
A última cena é da morte. A fadista extingue-se com um lamento entrecortado de versos. Um canapé de palhinha serve de leito de dor. Dir-se-ia um friso a lamentar o infortúnio, com presságios e com penas. É um adeus á vida, ao tempo, ao mundo. O Fado é sempre triste e desventurado. Uma elegia passa no proscénio em honra da que foi a encarnação dessa boémia romântica. Lisboa gosta muito que lhe contem histórias da sua história.
Aqui se narrou a crónica da Severa feita por Amália, que traçou o xaile, tomou a guitarra de cravelhas e soltou quadras para o triste fado corrido. Viveu a Severa do nosso tempo. Nenhuma fadista podia encarnar melhor este papel. Severa e Amália! Severa ficou na história e Amália passa para a história do fado, onde tem o lugar marcado. As duas são irmãs no génio e na arte de cantar. Daqui a cem anos os palcos representarão a vida de Amália como agora se faz à Severa.
in: Voz de Portugal 1955