A minha especialidade é o Fado e nunca me desviarei desse caminho!
Afirmava Amália numa entrevista em 1945.
Uma entrevista sensacional com
AMÁLIA RODRIGUES
No momento da sua nova abalada para terras de Santa Cruz
Amália Rodrigues — a grande Amália Rodrigues — a cotovia de voz rendilhada e cristalina, figura eleita do sonho e da saudade lusíada, foi de novo — e no curto período de menos de um ano — até às longínquas e maravilhosas terras do Brasil.
A menina bonita desta Lisboa galante e romântica, a noiva mimada destes bairros sonhadores e tranquilos que o Tejo afaga numa carícia imperecível, não quis deixar este céu azul que a viu nascer, este sol de primavera eterna que tantas vezes a osculou num arrobo de pajem milenário, sem dizer o seu adeus, até breve ao povo português, por intermédio do nosso jornal, em cujas colunas ficam documentadas algumas preciosas declarações cedidas, em primeira mão, por esta extraordinária figura do Fado.
Enquanto os motores do «Clipper» da Pan-Americana, nessa noite primaveril de 30 de Maio, ensaiavam os primeiros roncos para o seu voo transoceânico, nós aproveitando uns minutos de tréguas concedidas pelos inúmeros admiradores da artista, que lá foram apresentar-lhe os cumprimentos e desejos de boa viagem, começamos, a entrevista. que oferecemos á curiosidade dos nossos leitores.
Fora nosso propósito ir até ao ir fundo de algumas considerações que estão um pouco à margem de um momento tão solene como é uma despedida, por isso prevenimos a artista do nosso intuito, ao que ela, modesta como sempre, tão simples e tão humilde na sua maneira de ser e de tratar, o que mais realça a sua extrema simpatia, respondeu num sorriso quase infantil, disposta a concedermos tudo o que precisássemos de si.
«...as saudades da pátria e da família eram já imperiosas...»
— Amália — começamos — os leitores da «Guitarra» desejam saber algo que se relacione com estas lua as duas consecutivas viagens ás terras de Além-Atlântico?
Este meu segundo contrato — respondeu a artista — obedece ao unânime desejo da colónia Portuguesa no Brasil, que da primeira que visitei esse grande e florescente país não teve ocasião de me ouvir como esperava.
— Mas, não cantou em público?...
— Sim, cantei, mas a minha permanência foi curta e o Brasil é grande...
— Onde cantou?
— No Casino Copacabana, para onde fui dirigida; e actuei por cedência dos meus empresários, em vários festivais no Teatro João Caetano, em honra do Corpo Expedicionário Brasileiro, que se encontrava combatendo na Europa. Deixei parte do meu repertório gravado em discos e fiz várias emissões na rádio Globo, propriedade do jornal carioca «O Globo».
— Nesse caso a sua passagem ficou bem assinalada...
— Deixei em suspenso inúmeros contratos e convites, pois, como lhe disse, o Brasil é imenso e a nossa colónia é poderosíssima.
— Não lhe foi possível deixar-se ficar por mais tempo?
— Aproxima-se o Natal e as saudades da Pátria e da família eram já imperiosas.
— E daí o regresso inevitável!?...
— Era a primeira vez que me ausentava por tanto tempo e para tão longe e sentia minar-me dia a dia aquela doença da distancia, aquela falta de Lisboa – desta Lisboa a e quem tudo devo...
— E uma lágrima furtiva começou a borbulhar nas suas órbitas cheias de mocidade, de uma mocidade a que não faltava, sequer, uma pequenina sombra de melancolia, fundo sentimental de uma aguarela matizada por todos os fulgores...
«Farei o possível por corresponder ao interesse não só da colónia como do próprio público brasileiro...»
Mas a lágrima quedou silenciosa e nós insistimos:
— A natureza do novo contrato permite-lhe mais amplo raio de acção?
— Vou dirigida, como da primeira vez, para o Copacabana, mas autorizada para, nos dias exibir-me onde me aprouver.
— E onde a esperam os maiores triunfos da sua fulgurante carreira...
— Farei o possível por corresponder ao interesse não só da colónia como do próprio público brasileiro, que também não teve oportunidade de me ouvir devidamente.
— Que impressão lhe causou o público carioca, da sua maneira de reagir perante o Fado?
— Confesso que me senti tão à vontade como se cantasse num salão de Lisboa. O ambiente não se me tornou estranha e de toda a gente recebi as maiores provas de simpatia.
Esta afirmação pujante de firmeza e de sinceridade, deu-nos forças para entrarmos no terreno que ambicionávamos tocar, esclarecendo uma dúvida que tínhamos, produto de certos boatos postos a circular e que um jornal humorístico de Lisboa trouxe a lume, registando determinado incidente que teria ocorrido no Copacabana durante uma exibição da nossa entrevistada.
«A minha especialidade é o Fado e nunca me desviarei desse caminho!»
Há um assunto que gostaríamos fosse por V. esclarecido para satisfação dos nossos leitores que, como deve saber, são todos, eles seus admiradores...
— Respondo a tudo. É só perguntar...
— Aquele «caso Vargas Herédia» a que um jornal de Lisboa se referiu em moldes de reportagem humorística, tem algum fundo de verdade?
Amália, cada vez mais senhora de si, respondeu à nossa pergunta com uma segurança e uma firmeza tais, que não nos deixou dúvidas sobre a sua inconfundível personalidade.
— Toda a gente sabe que eu canto essa canção espanhola e, como essa, outras que mais sugestionam a minha sensibilidade, sem contudo tentar com elas fazer carreira. A minha especialidade é o Fado e nunca me desviarei desse caminho!
— Não quer dizer que não possa em qualquer circunstância cantar uma ou outra canção de género diferente?
— Claro. É o que acontece com «Vargas Herédia» e «Los Picoñeros», canções que, manda a verdade, nunca foram por mim interpretada de modos a escandalizar ninguém, reconhecendo, embora, que estou longe de lhes dar a característica própria. Basta a diferença da linguagem...
— Continue, Amália, mas não se esqueça que nós sabemos o que a Império Argentina disse, publicamente, a respeito da sua interpretação nesses números.
— Evidentemente, houve exagero da grande artista espanhola e eu não sou ingénua ao ponto de acreditar na profundidade de um simples arrebatamento, dimanado mais por uma grande simpatia que a artista me votou que por qualquer outro motivo...
Todavia e neste ponto é que eu posso fazer fé — trabalhei essas canções dentro das possibilidades máximas dos meus recursos e do meu brio, afim de as não deturpar; já que executá-las, como na origem, seria impossível. E incluí-as, no meu repertório conscientemente convencida de que podia com elas não fazer má figura.
— Mas que o público frequentador do Copacabana não apreciou talvez?...
«No fim remato com o Mouraria e ficamos todos amigos ...»
— Reside precisamente nesse capítulo — continuou a Amália — a falta de lógica do tal jornal humorístico...
— Exemplifique...
— Eu fui recebida no Rio de Janeiro tal como o sou em Lisboa: o mesmo ambiente de simpatia, o mesmo carinho peja minha pessoa e, o mesmo interesse pela minha modesta arte. E sucedeu lá o que é uso suceder aqui quando mudo de género: formam-se partidos. Uns querem que eu cante só Fado; outros pedem-me também «Los Picoñeros» e «António Vargas Herédia» para variar e aligeirar um pouco a minha actuação. Sou forçada a atender ambos os partidos. No fim remato com o «Mouraria» e ficamos todos amigos. Ora aí está o que se passou no Brasil, cuja retumbância nunca poderia fornecer conteúdo para uma simples crónica....
«Vamos sempre as duas de braço dado...»
Satisfez-nos plenamente estes esclarecimentos, que vieram a tempo de desfazer certas insinuações postas a circular pela má-língua e, mudando de rumo, prosseguimos:
— Que tempo pensa agora demorar-se?
— Uns oito meses, aproximadamente.
— Não pode fazer isso por menos?...
— Não me será possível!...
— V. sabe que Lisboa não a pode dispensar...
— Lisboa não fica sem mim. Para onde quer que eu vá levo-a comigo — vamos sempre as duas de braço dado...
— Então boa viagem, Amália!
— Obrigada. E não se esqueça de dizer adeus, por mim, ao povo português e de me enviar todos os números da «Guitarra de Portugal»