EU TAMBÉM TIVE UM SONHO
Na minha cama, só, estava deitado e, sem poder dormir, pus-me a sonhar — que eu sonho muitas vezes acordado e o que sonhei então vou-lhes contar:
Tive um pesadelo, em que eu, por conveniência, era comunista, membro de uma loja política, e que principiava com a minha ida ao Ministério da Cultura, onde o ministro me incumbia, não sem alguma pompa — que eu, no sonho mau, era algo presunçoso —, de superintender, junto da UNESCO, à candidatura do Fado a obra-prima do património oral e imaterial da humanidade, para o que me constituía em embaixador daquela ciclópica tarefa. O ministro disse-me ainda para formar uma equipa que trabalhasse comigo todos os pormenores para o bom sucesso da empresa.
Mal saí do Palácio da Ajuda desatei a falar ao telemóvel, primeiro para convidar uma jovem fadista em ascensão — achei de bom tom acrescentar algum ar hodierno à coisa —, depois um musicólogo de renome, de esquerda, como convém, finalmente o Museu do Fado, apoiado em várias associações da guitarra, do contrabaixo, do clarinete e de outros castiços instrumentos.
À medida que o pesadelo avançava, dei comigo a idealizar a cena em que o presidente Cavaco Silva me condecoraria com a Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, e uma onda de jactância abateu-se sobre os meus cabelos brancos, um tanto ralos, antecipando o êxtase pelos dividendos de triunfar onde o afamado tango fracassara. Mas a minha altivez, nessa fantasia, não conhecia limites e pus-me logo a pensar noutras glórias, noutras honrarias, eu tinha de ir mais além, o meu prestígio derrubaria fronteiras. Foi com algum arrepio que me imaginei no Itamarati, em cena idêntica, o Lula a galardoar-me com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, da mesma forma enternecida com que abraça o Chávez e, com mais alguns empenhos de peso, a receber até a Legião de Honra, lamentando, porém, que o “mon ami” Mitérrand já não fizesse parte do mundo dos vivos, pois não teria de renegar o meu comunismo oportunista a fim de entregar o tórax nas mãos do reaccionário Sarkozy. Quanto à da Jarreteira e do Banho, paciência, ficava de fora, tal como a Inglaterra que não integra o lote dos 170 países que subscreveram a Convenção.
E foi nessa altura do pesadelo que me ocorreu uma luminosa ideia que me ajudaria pela certa a atingir aqueles desideratos e mais alguns: dado que, além da Inglaterra, os Estados Unidos da América também estavam de fora da venturosa Convenção, eu teria apenas de agradar à maioria dos estados aderentes, quase todos do terceiro mundo. Como? Muito simplesmente lançando a teoria de que o fado nascera em África — Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné — e na América do Sul — Brasil e Rio da Prata. Estava feita a pombinha, deixava de fora a Ásia e a Oceânia, porque era um pouco complicado arranjar analogias entre a música fadista e as daquelas paragens, mas os estados desses continentes sensibilizar-se-iam com o aplauso dos seus pares africanos e sul-americanos. Os portugueses poderiam levar isso a mal, mas quem se rala com a indignação lusitana perante a minha ambição? Nada me deterá. Imediatamente após esta minha conclusão ouvi um burburinho, surgiram numerosos e agitados vultos na minha direcção, apavorei-me.
E eu que andava para ali entontecido, com o sol, com a luz, com a algazarra; de repente, porém fui atraído pelo doce trinar de uma guitarra: era o fado, mas o fado rigoroso, cantava-o a Severa a preceito, com a guitarra nas mãos do Vimioso tangia anseios de fogo no peito.
É verdade, era uma turba imensa, como se fora uma manifestação da Intersindical (que saudades!), só que encabeçada por Luiz de Camões, Fernando Pessoa, Alfredo Marceneiro e Amália Rodrigues — fiquei como que paralisado. Junto à cabeça da manif lobriguei ainda Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão-Ferreira, Miguel Torga, Pedro Homem de Mello, António Botto, tudo poetas que eu cantei, consegui até ver o O’Neill escrevinhando uns versos a ridicularizarem-me, enquanto a multidão se ia aproximando de mim, sufocando-me, e eu a reconhecer cada vez mais rostos, Maria Teresa de Noronha, Ercília Costa, a “santa” do Fado, Armandinho, José Nunes e Jaime Santos, com uma fita negra nas guitarras, Carlos Ramos, Manuel de Almeida, Hermínia Silva, Júlio Gomes, Alfredo Mendes, Martinho d’Assunção, Joaquim do Vale (“covinhas”), Pedro Leal, Manuel Martins, José Inácio e Francisco Perez Andión, o meu Paquito, todos eles com fumos nas violas. O pesadelo atingia o seu auge, com tantos olhares de desprezo em cima da minha pessoa, todos os meus mestres, todas as vozes, os tocadores, os poetas e os compositores que eu idolatrei, Júlio Peres, Frederico Valério, Lucília do Carmo, Alain Oulman, Berta Cardoso, Fernando Farinha, José António Sabrosa, Carlos Conde, Henrique Rego, os dois Joões, Linhares Barbosa (o autor do “Pierrot”, sob o pseudónimo de Luís de Sousa) e Silva Tavares, Manuel de Andrade, Vasco Lima Couto, Joaquim Campos, Júlio Proença, os manos Porfírio, Ricardo e José, João Soares Fernandes (“ferro-velho”), também Fernando Maurício, Carlos Zel, e muitos mais. Estava ali o fado inteiro — como cantou o Marceneiro, o fado que eu traíra da forma mais vil e videirinha.
Camões adiantou-se então a todos e proferiu, num timbre forte e muito bonito, a fazer lembrar Manuel Alegre: “para trás, fadista ímpio e traidor aos teus, já não és digno da nossa pena, das nossas liras, do nosso canto. A partir de agora, doravante e para o futuro, não mais, não mais, voltarás a cantar esta canção!”
Senti um frio inumano a percorrer-me o corpo todo. Acordei encharcado em suor e dei graças a Deus por tudo não passar de um sonho, ainda que sinistro.
E eu então, fadista como era, peguei numa guitarra e fui tocar. Cantei ao desafio com a Severa, mas isto meus senhores, foi a sonhar.
E ainda bem, porque mal acordei pus-me foi a cantar quadras do Luis Vaz e do Fernando, com complemento da Rodrigues, assim uma espécie de verso de pé quebrado, ao qual, como vocês todos sabem, se chama versículo. Claro que o cantei na famosa melodia do Tio Alfredo, que lhe deu o mesmo nome. De seguida adormeci profundamente, em paz com a minha consciência.
Lisboa, 5 de Abril de 2008
João Braga
P.S. As palavras em itálico são extraidas de uma letra de Francisco Radamanto que eu, no que toca a autorias, não brinco. Nem sequer em sonhos.