Há 58 anos estava eu em vésperas ir para a escola, as aulas começavam nessa época a 7 de Outubro, nesse ano 1951, como dia 7 foi a um Domingo, as aulas começaram no dia 8.
A escola que fui frequentar foram as Oficinas de S. José, dos Padres Salesianos, situada nos Prazeres, no bairro de Campo d´Ourique, escola que ainda hoje existe.
Recordo o livro, o caderno de duas linhas, um lápis, uma borracha de apagar, uma ardósia, uma pena para poder escrever na ardósia, uma caixa de lata pequena, com um pedaço de pano molhado, que servia para limpar a ardósia, e a mala que a tia Aida me deu, uma cesta de verga para levar o almoço, 2 carcaças com ovo mexido e uma laranja, preparado pela avó Judite.
Estava entusiasmado, porque também era o dia que eu iria estrear umas calças compridas, um "pull-over" grená sem mangas, que me deu a avó Maria, e mais que tudo as botas de cano alto (á cow-boy) que o meu pai me comprou na feira da ladra, recordo também que nessa altura ainda usava um fumo preto no braço direito, por luto de minha mãe.
Curiosidades: Ao escrever este texto e relembrar todas estas passagens da vida, nomeadamente o material do trabalho escolar de então, não posso deixar de expor aqui o que os pais cujos filhos entraram para a primeira classe (leia-se 1º ano), como a minha filha Beatriz, tiveram de adquirir!
Lista de material escolar para o 1º ano do ensino em 2009:
• 1 Livro de Matemática
• 1 Livro de Língua Portuguesa
• 1 Livro Estudo do meio
• 1 Dossier A4 de duas argolas de lombada larga
• 1 Borracha branca
• 2 Lápis de carvão n.°2
• 1 Afia com depósito
• 1 Bloco de folhas A4 com margens: (1 pautado, 1 desenho)
• 1 Bloco de papel "Cavalinho" A4.
• 1 Resma de Papel
• 1 Bloco de papel de lustro A4
• 2 Cartolinas ( cores diversas)
• 2 Rolos de papel crepe ( cores diversas)
• 2 Caderno de linhas A4,de capa preta (sem argolas), de preferência plastificado;
• 1 Caderno de linhas A5 sem argolas);
• 1 Caderno de desenho A5 (sem argolas);
• Lápis de cor (12 unidades)
• Lápis de cera (12 unidades)
• Canetas de cor (12 unidades)
• 1 caixa para guardar os materiais de cartão
• 1 Conjunto simples de aguarelas
• 2 Pincéis {um grosso/um fino)
• 1 Régua de 15cm
• 1 Tesoura bicos redondos.
• 2 Tubos de cola UHU.(1 em stick e 1 em líquido)
• 1 recarga de fita cola transparente
• 5 Micas de plástico
• 2 Rolos de cozinha
• 1 embalagens toalhetes c/álcool
• 1 novelo de lã ( cor diversa)
• 1 revista (usada)
Vou novamente relembrar a minha ida à feira da ladra nesse ano de 1951, com o meu pai antes do inicio da escola, em que para além da compra de uma grafonola, é também a história das minha botas de cano alto, que acima referi.
Foi num Sábado de Agosto de 1951, que o meu pai me foi buscar a casa dos meus avós para me levar a conhecer a Feira da Ladra. Nessa época meu pai já tinha abraçado a profissão de "Artista de Variedades – Fadista", mas estava no início, o que ainda não lhe dava estabilidade económica. Com o falecimento precoce de minha mãe, passei a viver com os meus avós, na Rua da Páscoa, a Santa Isabel – Campo de Ourique.
Fomos a pé até ao Largo do Rato, descemos a Rua de S. Bento e, quando íamos a meio da Av.ª D. Carlos I, comecei a chorar porque me doíam muito os pés; tinha calçado nessa altura umas botas de carneira com sola de pneu, boas para jogar à bola, mas para caminhadas pareciam ser feitas de chumbo. Meu pai ficou um pouco arreliado, pois estava a fazer planos para irmos até ao Campo de Santa Clara a pé, e logo me disse:
– Lá vamos ter que gastar catorze tostões em dois bilhetes de eléctrico para a Graça.
Carro Elécrico aberto anos 50
Chegámos a Santos e apanhámos o eléctrico, tal como o da foto acima (eléctrico aberto). Lembro-me que enjoei um pouco, pois o meu pai disse-me:
– Eh pá, estás amarelo, não vomites no carro – e passou-me para o topo do banco, onde era totalmente aberto, agarrando-me o braço com força para eu não cair.
Lá chegámos e entrámos para o recinto, pelo lado da Rua da Voz do Operário.
Foto do ambiente da Feira da Ladra, anos 50
Aquilo era um mundo fantástico para mim (tantas coisa giras); algumas eu nem sabia para que serviam, mas meu pai era frequentador e já ia com a ideia fixa do que queria comprar: uma grafonola! Fomos ao poiso do homem que ele sabia ter uma para vender, embora avariada. Na semana anterior já tinha tentado negociar um bom preço, mas não conseguiu. Com a minha presença (talvez para puxar ao sentimento) e batendo no argumento de que a corda estava partida e talvez nunca fosse possível arranjá-la, lá a comprámos por 20$00, incluindo uma caixa de agulhas e um disco de massa da "Voz do Dono" com dois temas de Maria Alice (que mais tarde veio a ser mulher de Valentim de Carvalho).
Tentámos, nos vários comerciantes, arranjar um disco do meu avô para lhe fazer a supresa, mas em vão; os discos de "Marceneiro" ainda eram preciosidades, raras de mais para aparecerem por ali.
Com o meu pai a transportar a grafonola, que depois de fechada parecia uma mala e tinha uma pega, começámos a descer em direcção à Av.ª 24 de Julho, para nos irmos embora. Ao passarmos junto ao gradeamento que dá para o Hospital da Marinha, havia um homem a vender calçado usado, mas com bom aspecto e muito bem engraxado. Os meus olhos fixaram logo uma botas de cano alto (à cow-boy). Pedi ao meu pai para ir ver se eram da minha medida, calcei-as e recordo que estavam um pouco compridas. Mas o homem disse logo que era a minha medida e que tinham solas novas, estavam muito baratas, só 15$00. Ó paizinho, compre, para eu levar para a escola (eu entrava em Outubro desse ano de 1952 para a 1ª Classe, nas Oficinas de S. José, aos Prazeres).
– São caras e o pai só tem... – e levou a mão ao bolso, mostrando 8$60.
O homem, com a sua lábia de vendedor, disse-lhe:
– Estas botas, por 15$00, são um pechincha... Mas como o miúdo está aí tão triste, dê cá isso e leve lá as botas.
Mesmo antes que meu pai dissesse algo, embrulhou-as em papel de jornal, atou-as com uma guita, à volta. Eu agarrei-as logo, pois o meu pai, carregado com a grafonola, ainda podia dizer que não, o que não aconteceu. Lá deu o dinheiro ao homem e – meu Deus, como hoje recordo (sem pieguices ,mas com uma lágrima no olho) – que alegria!
Começámos a descer para a 24 de Julho, quando o meu pai se volta para mim e a rir diz:
– O menino Vitó levou a sua avante, mas esqueceu-se de uma coisa: o pai não tem mais dinheiro e agora temos que ir para casa a pé; e olha que não te posso ajudar porque a grafonola ainda é pesada.
– Ó paizinho, não há problema; eu aguento.
– Sempre quero ver isso – retorquiu ele.
Chegámos ao Cais do Sodré e eu derreado, já não conseguia dar mais um passo. Meu pai, a quem também já doía o braço de carregar a grafonola, poisou-a no chão, junto a uma parede, sentou-me em cima dela, disse-me que não saísse dali porque ia ao bar da gare dos comboios, ver se estava lá alguém conhecido.
Fiquei ali e, passados uns minutos, o meu pai aparece com uma sandes de torresmos e um pirolito. Fiquei deliciado, porque já havia um bom bocado que tinha fome e sede, mas não tinha dito nada para não complicar ainda mais a situação. Então, ele disse-me:
– Bem, espero que tenhas aprendido a lição; mas como o pai ainda descobriu aqui no fundo do bolso uns trocos, que deram para as sandes e ainda nos sobrou 2$00, assim podemos ir de eléctrico até ao Rato.
Calculem o alívio e alegria quando ouvi esta novidade, e lá fomos os dois a rir às gargalhadas para a paragem do eléctrico.
Foi um dia em cheio (que saudades, pai)...
Mal chegámos a casa, o meu avô começou logo meter-se com o meu pai, em ar de troça:
– Uma grafonola... e avariada!
– Deixe estar, que eu e o Vitó arranjamos isto – dizia o meu pai.
Claro que eu não percebia nada daquelas coisas, mas recordo ter ficado todo orgulhoso com o comentário. No futuro viria a ter esse jeito para as máquinas e ferramentas, mas meu pai era um grande “engenhocas”, lá em casa arranjava tudo.
Limpámos muito bem a caixa, que estava um pouco mal tratada, e meu pai desmontou o engenho de corda. Lembro-me que era parecido com a corda dos relógios de sala e – vejam a nossa sorte – a corda não estava partida, tinha-se solto o engate da ponta, que prendia ao sistema de fixação do enrolamento. O meu pai todo contente só dizia:
– Eu sabia, eu sabia!
Após a montagem, com a família toda à volta do engenho posto em cima da mesa de jantar, o meu pai dá à corda, destrava a pequena alavanca e o prato começa a rodar. Foi uma proeza saudada com grande algazarra e alegria. Logo o meu avô deu o dito por não dito:
– Já podemos tentar arranjar uns discos meus.
Entretanto, meu pai monta uma agulha, dá à corda (avisa-nos que não se deve rodar até prender, pois pode partir a corda ou voltar a soltar-se o engate) e põe o disco da Maria Alice. Foi, decerto, o primeiro disco que ouvi na minha vida, de tal forma que ainda hoje me lembro do fado na totalidade:
Acredita meu amor
Quando te vou visitar
Às grades dessa prisão
Sufocada pela dor
De te ver assim penar
Estala meu coração
Por mim mataste um rival
És agora condenado
Ao degredo por castigo
Mas juro por amor fatal
Não vai meu corpo a teu lado
Mas vai minha alma contigo
Depois, tomámos o gosto à grafonola e o primeiro disco do meu avô que arranjámos foi da “ODEON”, com os temas, "Amor de Mãe" e "Os Olhos". Como sabem, as grafonolas não tinham uma velocidade constante, e então o meu avô, quando se ouvia, exclamava:
– Então não é que até parece que tenho voz de mulher!!
Disco de massa para grafonola
Mas voltemos às botas. Conforme tinha sido combinado, eram para estrear no primeiro dia de aulas, e assim foi, penso que a 6 ou 7 de Outubro. Nesse dia chovia torrencialmente, as botas vinham mesmo a calhar.
Ao fim do dia cheguei a casa desolado e com os pés todos molhados, pois as solas estavam todas desfeitas: eram de cartão colado sobre a sola inicial já gasta, muito bem pintadas, com anilina preta e graxa, o que lhes dava aquele aspecto consistente e novo! Fartei-me de chorar com o desgosto, mas mais tarde até rimos, porque nos lembrámos de como fora o negócio e, afinal, os enganados fomos nós. Pediu-se orçamento ao sapateiro, mas a minha avó disse logo que não se podia agora estar com aquela despesa, as solas e a mão-de-obra custavam quase 30$00 (o meu avô, naquela altura, ganhava 50$00 por noite e o meu pai, quando arranjava para cantar, não ganhava mais do que 20$00 a 25$00 por noite).
Ora, a solução acabou por ser uma alegria e um orgulho para todos nós, isto porque o meu bisavô (pai do meu avô Alfredo) era sapateiro e o meu avô, nos intervalos da escola, até o pai morrer, foi aprendendo o oficio e dando uma ajuda no trabalho. Como o meu avô era habilidoso, desembaraçava-se bem; comprou num armazém, em S. Paulo, um bocado de sola que lhe custou 6$00 ou 8$00 e, como tinha as ferramentas da arte de sapateiro que tinham sido do pai – as formas, sovelas etc. – foi ele próprio que me colocou as solas nas botas, botas que usei enquanto me serviram. Creio que ainda acabaram por levar umas solas de borracha.
Desculpem estes desabafos/recordações dos meus Fados!
Vítor Duarte Marceneiro