No mês em que toda a gente vai andar a falar de fado, João Miguel Tavares decidiu poupá-lo a vergonhas desnecessárias e diz-lhe em apenas 4000 caracteres o que precisa de saber sobre a canção de Lisboa. Não é uma tese de doutoramento, mas dá para se safar ao jantar.
O fado era aquela música que os marinheiros portugueses, tomados pela saudade, já cantavam nas caravelas, certo?
Eeerh... Por acaso, não. As origens do fado continuam a ser muito discutidas, mas nas caravelas de certeza que nunca embarcou. É que a palavra, usada num contexto musical, só começou a aparecer em finais do século XVIII. A primeira descrição documentada do género "fado" data de 1827 e foi feita por um capitão francês que andou a cirandar pelos portos do Brasil.
Mas nos portos do Brasil do século XIX já havia mulheres vestidas de preto a queixarem-se da vida?
Nada disso. O que havia então era negros a dançar o "fado".
Como assim? 0 Fado dançava-se?
No Brasil, sim: era uma dança com profundas influências africanas. O tal capitão francês classificou-a como "voluptuosa", que à época era uma maneira de dizer "provocante" e "erótica". Uma pouca-vergonha, enfim
Ora essa. E como é que se transformou no fado que conhecemos?
Esse é o grande mistério. Aliás, há quem recuse a origem brasileira, apontando influências árabes, ou quem - caso do investigador José Alberto Sardinha - defenda que se trata de uma criação 100% nacional, nascida do romanceiro tradicional, que chegou à capital através dos músicos itinerantes. O certo é que ainda na primeira metade do século XIX o género já é identificado em Lisboa, sobretudo nos
bairros de má fama. Por volta de 1830, a expressão "casa de fado" era usada como eufemismo de um estabelecimento dedicado à prostituição. Mais pouca-vergonha?
O inicio da história do fado está cheio dela. Aliás, se chamássemos fadista a alguém no século XIX corríamos o risco de ser agredidos. A palavra era um sinónimo de marginal e de prostituta. Foi para fugir a esta conotação que as palavras "cantador" e "cantadeira", ainda hoje usadas, foram criadas. Sim, porque a famosa Severa era prostituta. A Severa é o grande mito fundador da história do fado, e dela se sabe muito pouco, para além de ter nascido em 1820 e morrido aos 26 anos. Mas sim, a senhora era prostituta e cantora de fados. O Conde de Vimioso apaixonou-se por ela e a longa ligação entre ambos terá aberto as portas do fado aos meios intelectuais e aristocráticos. E depois?
Depois a popularidade do fado não parou mais de crescer, ultrapassando as diferenças de classe. A Severa foi cantada e foi pintada e o fado foi aos poucos afirmando-se como um elemento fundamental da cultura urbana lisboeta. Mas até aos anos 30 do século XX continuou a ser uma actividade amadora. O que aconteceu nos anos 30? A rádio e o disco conduziram à sua profissionalização. E depois o Estado Novo, para poder controlar um meio potencialmente subversivo, instaurou a obrigação de cada fadista ter uma carteira profissional para cantar em público e ser remunerado por isso.
Foi a partir daí que começaram a aparecer as casas de fado como hoje as conhecermos?
Exactamente. A partir daí começou a surgir a cultura da casa de fados, mais a respectiva iconografia fadista - o xaile, o silêncio, as luzes baixas - e a formar-se o conjunto de fados tradicionais. O que é isso dos fados tradicionais? Os especialistas defendem que todo o fado entronca em três melodias básicas: Fado Menor, Fado Corrido e Fado Mouraria Em cima deles nasceram muitos outros fados, chamados tradicionais ou clássicos (as opiniões dividem-se sobre o número, variando entre os 150 e os mais de 300). Esses fados, ao contrário dos fados-canção (geralmente compostos a partir de um poema especifico), não têm refrão, respeitam certas estruturas melódicas, suportam as letras mais variadas e abrem um grande espaço de improvisação ao cantor e ao seu estilar. Ao seu quê?
Ao seu estilar. O "estilar" é a assinatura do fadista, aquilo que o torna original. Tem tudo a ver com a capacidade de improvisação e de criar as chamadas "voltinhas" por cima de um mesmo colchão melódico. É isso que faz com que o mesmo Fado Vitória cantado por Amália em "Povo que Lavas no Rio" ou por Fernando Maurício em "Igreja de Santo Estêvão" possa parecer duas canções totalmente distintas. Fadista que é fadista improvisa e inova. Fadista que não é fadista limita-se a copiar o próximo - e a abrir muito a goela no ataque final.
in: Time Out Lisboa de 16 de Novembro 2011