Eu Amo Lisboa
Poema: José Murta Lourenço
Voz: Luis Gaspar
Música: Joaquim Campos
Execução musical: Conjunto de guitarras de Raul Nery
Realização: Vítor Duarte Marceneiro
EU AMO LISBOA
Eu amo Lisboa.
E eu quero escrever sobre Lisboa porque a amo.
Mas que Lisboa devo eu amar?
Sobre que Lisboa devo eu escrever
se há tanto em Lisboa
de que não gostar?
Eu gostaria de escrever sobre as caravelas
os monumentos, os barcos a dormir no cais
as colchas em festa nas janelas
as aldrabas nos velhos portais.
Eu gostaria de escrever sobre a Lisboa que fica
no coração do marinheiro a embarcar
sobre os telhados da velha Bica
dizendo adeus à outra margem
e aos barcos a largar.
Eu gostaria de escrever sobre a Lisboa das vielas
sobre o cheiro a cravo e a manjerico no ar
sobre o cheiro das sardinhas nas ruelas
e na noite o meu povo a cantar.
Eu gostaria de escrever sobre os jardins floridos
sobre os velhos repousando nos seus bancos
sobre o verde da relva dos seus parques esquecidos
e de vistosas flores por todos os cantos.
Eu gostaria de escrever sobre a Lisboa antiga
sobre os azulejos e as fachadas coloridas.
Eu gostaria de escrever sobre as suas cores vivas
e eternizá-los na letra de uma cantiga.
Mas sou forçado a escrever sobre o sujo do rio
e sobre toda a imensa sujidade
aquela que existe
se vê e ninguém viu
ou se passa por ela
olhando de lado.
Mas eu amo Lisboa.
E por isso sobre ela escrevo.
Sobre o que tem de bom e o reverso.
E amo Lisboa mesmo assim
porque como filho lhe devo
o amor que o filho deve a sua Mãe.
Não sei por onde vou,
José Régio - "Cantico Negro" - HD from Luis Gaspar on Vimeo.
CÂNTICO NEGRO
Autor: José Régio
"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!