Meus caros leitores, foram muitos os pedidos para saber do paradeiro da saudosa Maria CLara, posso afirmar de fonte fidedigna, que felizmente ainda está entre nós, com a bonita idade de 84 Anos
A FELICIDADE DE SER ARTISTA
Voz límpida e clara na dicção Maria Clara, senhora de uma agilidade vocal surpreendente, sabia dar a tudo o que cantava a medida certa, "o tom" ideal. Seriam esses os ingredientes do grande sucesso que teve, aliados a um conjunto de melodias, numa altura de poucas congeminações extra-musicais.
O seu nome de baptismo é Maria da Conceição, mas pelas suas qualidades vocais impôs o nome artístico de Maria Clara.
A Maria Clara ficará para sempre ligada a “Canção da Figueira” de António de Sousa Freitas e Carlos Correia, mas a cançonetista foi um das rainhas das marchas de Lisboa sendo sua a criação da “Marcha do Centenário” (1940) de Raul Ferrão e Norberto de Araújo para além de variadas outras marchas que fizeram Lisboa cantar nas décadas de 1940, 1950 e 1960.
Maria Clara começou como amadora numa colectividade do bairro lisboeta das Necessidades, Grupo Dramático e Escolar Os Combatentes, de onde viriam aliás outros grandes nomes do panorama artístico português, designadamente Tony de Matos e Aida Baptista.
Numa entrevista à revista Super Música a intérprete recordou: “naquela altura era muito natural. Nós fazíamos as nossas peças, as nossas revistas e depois iam lá empresários sempre à caça de novos talentos e um dia calhou-me a mim”.
Estreou-se no teatro com um elenco de luxo, ao seu lado outro estreante, o agora realizador António Vilar.
“Estreei-me na Costureirinha da Sé, com o António Silva, a esposa, Josefina Silva, a Luísa Durão, o Costinha, eu é que não era ninguém. Mas era uma grande camaradagem, todos muito meus amigos. Só não andavam comigo ao colo, eu era a mais nova”.
Depois seguiram-se várias operetas, nomeadamente “A Invasão” e “Fado” e logo o convite da editora Valentim de Carvalho para gravar, o que fará num ritmo alucinante para a época, dado o êxito que fazia.
“Depois da ‘Costureirinha’ gravei vários números da opereta ‘Fado’ e por aí adiante. Se gravava é porque vendia, e iam muito ao teatro buscar números que tinham êxito”, recordou nessa mesma entrevista.
O percurso de Maria Clara é um pouco o inverso da época, começa no teatro e só depois a rádio, pois nas primeiras provas que fez para a Emissora Nacional “não agradaram lá muito” mas acabará por entrar para os quadros da Emissora e participou, entre outros programas, nos famosos "Serões de Trabalhadores".
Referindo-se a estes programas afirmou “aquilo era indescritível, havia gente em todo o lado, só faltava pendurarem-se. Mas eram espectáculos muito bons e completos. Havia um momento de ópera ou apenas a orquestra sinfónica da Emissora e depois a parte mais ligeira onde eu entrava e outros, lembro-me por exemplo do Zé António, das Irmãs Meireles, a Maria de Lurdes Resende e muitos outros. Éramos muitos. Havia naquela época uma grande riqueza quer de intérpretes quer de quem escrevesse e compusesse”.
Além das muitas marchas de Lisboa que interpretou e gravou, Maria Clara recuperou temas do cancioneiro popular português para além do repertório romântico com canções como “De cá para lá”, “Alfazema do monte” ou “Hás-de voltar”, “As pedras que tu pisas” ou “Na mesa do canto” e as muitas sobre terras portuguesas, refira-se “Santa Luzia” (Fernando Carvalhos/Campos Monteiro), relativa a Viana do Castelo e “Canção de Faro” (Tavares Belo/Hernâni Cidade).
De Lisboa a sua cidade natal além da “Marcha do Centenário” destaca-se “A casa de Santo António” (João Nobre/José Galhardo), “Menina Lisboa” (João Nobre) ou o grande sucesso que foi “Lisboa velha amiga” (Manuel Paião/Eduardo Damas).
Numa outra entrevista, ao mensário Ecos de Belém referindo-se à catalogação que se faz de nacional-cançonetismo a um período correspondente ao Estado Novo (1933-1974) afirmou: “Eu não gosto dessa coisa de ‘nacional-cançonetismo’ porque foi dado com sentido pejorativo e, isso eu não aceito! Nem percebo, nem sei o que querem dizer com semelhante coisa; ou no fundo eu percebo, mas faço de conta... Não aceito que as pessoas ponham rótulos nos que cantavam nessa época no nosso país esquecendo ou procurando ignorar que todas as pessoas tiveram de andar com muito cuidado porque tinham medo. E o medo não envergonha ninguém! Cada um procurava fazer a sua vida sem causar problemas nem tê-los. Eu trabalhava na Emissora Nacional, a emissora era do Estado e eu trabalhando ali com a maior seriedade sem fazer diferença entre as pessoas, fossem da Extrema-Esquerda, fossem da Extrema-Direita, eu não admito que comigo tivessem ideias a esse respeito ou pusessem rótulos. Isso magoa e eu não aceito isso de ninguém. Cantava porque gostava e até tive problemas na família”.
Nessa mesma entrevista revelava o seu gosto pelo “fado musicado”: ”Eu gosto muito do fado-canção, tenho muito apreço, e gosto de gravar com a guitarra portuguesa que tem um som extraordinário. Tem uma doçura inigualável”.
Referindo-se à sua profissão declarou: “Só me deu satisfação e momentos de felicidade. A minha vida profissional foi a mais feliz possível, não só graças ao público, como aos colegas que tive, havia um grande companheirismo”. Guardado lá no fundo está o orgulho de um dia ter ouvido um elogio de Alfredo Marceneiro. “Ele quase nunca falava. Mas nós sabíamos que o que ele dissesse era sagrado. E certa noite, no Teatro Avenida, creio eu, ele virou-se para mim e disse-me: 'A menina canta muito bem, canta mesmo muito bem, nessa noite fiquei nas nuvens, eu nem me queria deitar”. (*)
Nuno de Almeida Coelho
Maria Clara canta:
Marcha do Centenário 1947
Letra: Norberto Araújo
Música: Raul Ferrão
I
Toda a cidade flutua
No mar da minha canção.
Passeiam na rua
Retalhos de lua
Que caem do meu balão.
Deixem Lisboa folgar,
Não há mal que me arrefeça,
A rir, a cantar,
Cabeça no ar,
Eu hoje perco a cabeça
.
Estribilho
Lisboa nasceu
Pertinho do Céu
Toda embalada na fé.
Lavou-se no rio,
Ai, ai, ai, menina,
foi baptizada na Sé.
Já se fez mulher,
E hoje o que ela quer
É trovar e dar ao pé.
Anda em desvario,
Ai, ai, ai, menina,
Mas que linda que ela é!
II
Dizem que eu velhinha sou
Há oito séculos nascida
Nessa é que eu não vou
Por mim não passou
nem a morte , nem a vida
Um pajem me fez um fado,
um vali me leu a sina:
não ter namorado,
nem dor, nem cuidado,
e ficar sempre menina
III
Como as cidades famosas,
também tive horas de glória.
De tranças mimosas,
toquei-me de rosas,
enchi de rosas a história,
A grinalda inda me resta,
que em Lisboa há sempre flores.
E agora na festa,
minha sina é esta
encher Lisboa de amores.
IV
Trago um balão enfeitado,
e enfeitado o coração,
vou de braço dado,
não me dá cuidado
que gostem de mim ou não.
Ai que bom andar ao léu,
mais linda do que é preciso!
Todo o mundo é meu,
p'ra ganhar o céu,
basta atirar-lhe um sorriso,