Que saudades daquela noite no «Solar da Hermínia», em que cantei pela primeira vez, na presença do meu pai e do meu avô.
O «SOLAR da HERMÍNIA» e a própria Hermínia Silva fazem parte de um dos episódios mais marcantes da minha vida, na relação pai/avô/fado
Corria o ano de 1965, inícios de 1966 , tinha cerca de 20 anos, fiz uma pausa nos bailaricos e outros «poisos» e comecei a frequentar o fado amador, que praticamente desconhecia, pois, até essa altura, costumava acompanhar o meu avô e o meu pai às casas tradicionais.
Certo dia, uns amigos convidaram-me para uma noite de fados no Galito, que ficava no Estoril. Lá fui e, como é lógico entre os frequentadores habituais, ao saberem de quem eu era filho e neto, logo pensaram que havia mais um para cantar. Gostei imenso do ambiente e passei a ser frequentador assíduo. Ali conheci o Zé Pracana, o malogrado Carlos Zel, o Frazão, pai deste, e do saudoso Alcino, que era então um miúdo mas já demonstrava o gosto que tinha pela música e pela guitarra portuguesa (estava sempre a dedilhar a guitarra do Zé Inácio, mal este parava de tocar e a poisava), o Valdemar Silva, o saudoso Carlos Barra, a Maria do Carmo «Micá», e tantos outros amadores do Fado, na época.
Ora eu não cantava. Para ser sincero, com muita pena minha, achava que não conseguia e, para «meter água», era melhor estar calado. Isto porque tinha a noção da responsabilidade de ser filho e neto de quem era.
Mas a rapaziada estava sempre a apertar comigo (este gajo é filho de fadistas e não canta?), alguns até aventavam a hipótese de que eu não cantava porque tinha a mania de que era bom de mais para cantar ali! Mal sabiam eles a pena que eu tinha de sentir que não era capaz.
Certa noite, por insistência do Zé Inácio, grande executante de viola, mas que, na altura, fazia o acompanhamento à guitarra, acompanhado à viola pelo «Pirolito da Ericeira», começaram a dedilhar a Marcha do Marceneiro, o Zé Inácio começou a desafiar-me, era no princípio da noite, não havia ainda muitos clientes, timidamente comecei a entoar o poema Amor é Água Que Corre (eu nem calculava que, afinal, sabia o poema todo). Parece que não saiu muito mal, recordo que o tom em que cantei foi Fá (hoje canto em So/); no final, o Zé Inácio disse-me:
- Como vês, é preciso não ter medo, perder a vergonha e, a partir de agora, ir praticando. Tomei-lhe o gosto e, durante algum tempo, só cantava este fado. Foi ainda com a ajuda do Zé Inácio que comecei a ensaiar e a cantar outros poemas, mas cantava sempre letras e músicas do repertório do meu avô.
Uma noite, no fim da fadistice do costume no Galito, o Valdemar Silva, que era conhecido pelo «Chico Fadista» e passou a ser o meu companheiro destas andanças, aceitou o meu convite para irmos até ao Bairro Alto, ter com o meu pai, Alfredo Duarte Júnior, que estava a cantar contratado no «Solar da Hermínia».
Chegámos, as luzes estavam reduzidas, como é costume quando se canta o fado, era o meu pai que estava a cantar, pelo que ficámos logo ali na entrada, sentámos-nos na mesa da Dona Hermínia que, prontamente, com o ar carinhoso e sorridente com que sempre me recebia, segredou-me ao ouvido que o meu avô, Alfredo Marceneiro, se encontrava na sala.
O meu pai termina o fado que estava a cantar e informa os presentes:
— Senhoras e Senhores, o meu pai, Alfredo Marceneiro, a pedido da Dona Hermínia, vai cantar.
Esta informação foi, de imediato, estrondosa e efusivamente recebida pela assistência, pois era do conhecimento geral, o quanto era difícil convencer Alfredo Marceneiro a cantar.
O meu avô cantou, julgo que uns três fados, sempre escutados num rigoroso silêncio e, no final, vigorosamente aplaudidos.
Ainda com as luzes reduzidas e após uma das entusiásticas ovações que o meu avô teve, sublinhada por ditos do tipo «- Ah! Grande Ti' Alfredo», houve um curto espaço de tempo de relativo silêncio e eis que o Valdemar, o «Chico Fadista», se levanta de repente e, com uma voz possante, diz sensivelmente isto:
- O que vocês não sabem é que aqui o Vitó, neto do Ti Alfredo também canta, e não deixa a família ficar mal!
Fez-se um silêncio total na sala, eu fiquei sem pinga de sangue! (- Ó Chico, tu és maluco?)
A assistência começou a bater palmas, insistindo para que cantasse, eu nem conseguia levantar-me, olhei de relance para o meu pai e para o meu avô, estavam ambos na expectativa, eu só queria que aparecesse ali um buraco onde pudesse desaparecer. A Dona Hermínia, então, com o seu habitual bom humor, disse-me: «- Vai, filho, não tenhas medo. Quando a música começa, a gente esquece tudo.»
Levantei-me, hesitante, e dirigi-me para junto dos guitarristas, pedi que tocassem a «Marcha do meu Avô». Aos acordes iniciais da música, todo eu tremia, mas foi um momento inesquecível, eu ia cantar à frente do meu pai e do meu avô. E, logo a seguir ao meu avô, era uma grande responsabilidade.
Comecei a cantar e nunca tirei os olhos do meu avô. Este, com o cotovelo sobre a mesa e a cabeça apoiada no braço, de olhos fechados, ouvia-me atentamente. Reparei que trauteava baixinho os versos que eu ia cantando e ia acenando com a cabeça.
Quando terminei, o público foi generoso e aplaudiu-me. Dona Hermínia comentou: «- Temos fadista.»
O comentário do meu avô foi: «- Não está mal, mas tem é que aprender outros versos, para não andar a cantar a mesma coisa que eu ando a cantar há mais de trinta anos.» !.
O meu pai avisou-me logo: «- Deixa lá as fadistices, que isto não dá nada, tira mas é o teu curso, e fado, só por desporto.»
Não segui estes conselhos e, sempre que me dão a oportunidade continuo a cantar, nas suas músicas, os versos do seu repertório não enjeitando o “apelido” MARCENEIRO.
Com este episódio ultrapassei algumas barreiras que até então julgava intransponíveis, e assim acabava de entrar no Fado, bem ou mal, mais um elemento da família, dando a origem ás “ 3 GERAÇÕES DE FADO de MARCENEIRO”
Gravei em disco e em Televisão com meu avô e meu pai
Vítor Duarte Marceneiro, diz o poema "Janela da Vida" da autoria de Carlos Conde, com fundo musical da Fado Viela de Alfredo Marceneiro. Foi gravado em 1994 no 1º aniversário da SIC.
Este poema foi feiro para o repertório de Alfredo Marceneiro em 1926, mas foi proibido pela censura.
"JANELA DA VIDA"
Letra de: Carlos Conde
Música: Marcha de Alfredo Marceneiro
O Bailado das Folhas
Poema de Henrique Rego
Dito por Vítor Marceneiro
Música ao piano do Maestro Rui Serodio
" O BAILADO DAS FOLHAS "
Letra de: Henrique Rêgo
Foi numa pálida manhã de Outono
Soturna como a cela dum convento
Que num vetusto parque ao abandono
Dei largas ao meu louco pensamento
Cortava o espaço a lamina de frio
Que impunemente as nossas carnes corta
E o vento num constante desvario
Despia as árvores da folhagem morta
Folhas mirradas como pergaminhos
Soltas ao vento como os versos meus
Bailavam loucamente p´los caminhos
Como farrapos a dizer adeus
Das débeis folhas lamentei a sorte
Mas reflecti depois de estar sereno
Que bailar á mercê de quem é forte
É sempre a sina de quem é pequeno
Desde então, o meu pobre pensamento
Fugiu para não bailar ao abandono
Como a folhagem que bailava ao vento
Naquela pálida manhã de Outono
Estar apaixonado é ser namorado todos os dias, pobres dos que nunca se apaixonaram... a vida é amor, amor é dávida.
Amar de mais, é doidice
Amar de menos é maldade
Vítor Duarte Marceneiro
canta: Fado do Cravo
" FADO DO CRAVO"
Letra de Fernando Teles
Música: Fado Cravo de Alfredo Marceneiro
Foi em noite de luar
Na noite de São João
Que eu te vi, óh! minha amada
No baile foste meu par
E dei-te o meu coração
Foste minha namorada
Andámos na roda os dois
E saltamos á fogueira
Meu peito era uma brasa
Findou o baile e depois
Foste minha companheira
Levei-te p´ra minha casa
Nessa madrugada santa
Por meu mal me deste um cravo
No lado esquerdo o guardei
Minha paixão era tanta
Fui do teu capricho escravo
Eterno amor te jurei
Foram dias decorrendo
Semanas, um ano feito
De amor eu tinha a fragrância
Mas o cravo emurchecendo
Revelava que o teu peito
Não tinha a mesma constância
Numa noite, ao conhecer
Mentira no teu amor
De raiva desfiz o cravo
Não mais quis por ti sofrer
Deitei fora a murcha flor
Deixei de ser teu escravo
A História... a tradição, o Dia de São Valentino
A história do Dia de São Valentim remonta a um obscuro dia de jejum tido em homenagem a São Valentim, a associação ao amor romântico chega depois do final da Idade Média, durante o qual o conceito de amor romântico foi formulado.
O Bispo Valentim lutou contra as ordens do imperador Cláudio II, que havia proibido o casamento durante as guerras acreditando que os solteiros eram melhores combatentes.
Além de continuar celebrando casamentos, ele tabém se casou secretamente, apesar da proibição do imperador. A prática foi descoberta e D. Valentim foi preso e condenado à morte. Enquanto estava preso, muitos jovens lhe enviavam flores e bilhetes dizendo que ainda acreditavam no amor. Enquanto aguardava na prisão o cumprimento da sua sentença, ele se apaixonou pela filha cega de um carcereiro e, milagrosamente, devolveu-lhe a visão. Antes da execução, D. Valentim escreveu uma mensagem de adeus para ela, na qual assinava como “Seu Namorado” ou “De seu Valentim”.
Considerado mártir pela Igreja Católica, a data de sua morte é celebrada em muitos países.
No século XVII, ingleses e franceses passaram a celebrar o Dia de São Valentim como a união do Dia dos Namorados. A data foi adoptada um século depois nos Estados Unidos, tornando-se o The Valentine's Day.
Na Idade Média, dizia-se que o dia 14 de Fevereiro era o primeiro dia de acasalamento dos pássaros. Por isso, os namorados da Idade Média usavam esta ocasião para deixar mensagens de amor na soleira da porta do(a) amado(a).
Actualmente, o dia é principalmente associado à troca mútua de recados de amor em forma de objectos simbólicos. Símbolos modernos incluem a silhueta de um coração e a figura de um Cupido com asas. Iniciada no século XIX, a prática de recados manuscritos deu lugar à troca de cartões de felicitação produzidos em massa.
O dia de São Valentim era até há algumas décadas uma festa comemorada principalmente em países anglo-saxões, mas ao longo do século XX o hábito estendeu-se a muitos outros países.
No dia 23 de Dezembro faria 89 anos, o meu saudoso pai ALFREDO DUARTE JÚNIOR, em sua memória volto a apresentar este video-clip, em que ambos cantamos ao desafio o dueto "A Lucinda Camareira" com letra de Henrique Rego e música de meu avô "Fado Bailarico" (este Fado também esteve em tribunal nos anos sessenta, pois havia um um individuo que se intitulava autor do mesmo, perdeu acção e a razão, mas outros mais virão).
Pai não fazes parte dos paineis das vaidades nem das palestras dos doutorados, mas pertençes a uma geração que ficará na história do Fado da qual fazes parte integrante, e como tal nunca serás esquecido....
Dueto " A Lucinda Camareira"
(Pai e Filho)
Alfredo Duarte Jr. & Vítor Duarte
Recebi do meu amigo Francisco Pintéus (*), esta missiva sobre meu pai, que publico com muito gosto, e deveras agradecido.
Tenho de Alfredo Duarte Júnior uma memória afectiva muito forte e que me acompanha desde a juventude.
Cedo comecei a ouvi-lo e a gostar do seu estilo: aquele marialvismo da época, mas também a ternura/paixão com que cantava a mulher.
Só mais tarde lhe compreendi a luta contra o sectarismo e a incompreensão.
Lembro-me com saudade da primeira vez que estive pessoalmente com ele: cidade da Beira (Moçambique), ano de 1973/74, eu na guerra colonial e ele cantava na Ronda do Fado (Moulin Rouge). Entrei e perguntei-lhe: "o Cadaval não lhe diz nada?", ao que ele, unindo-me num forte abraço respondeu: "É a nossa terra!"
Faria hoje anos. Mas a memória não se apaga: ele é a prova provada que o FADO, sendo só um, pode ser muitos: depende da forma de o sentir e cantar.
Filho do “Monstro” Alfredo Marceneiro, sempre o honrou e compartilhou o amor ao Fado, herança que este lhe deixou.
Alfredo Duarte Júnior cantou-O como ninguém, e sentia-o como poucos.
Um abraço do
Francisco Pinteus
(*) Francisco Pinteus, é um investigador de Fado, fã de Alfredo Marceneiro, e garnde amigo da família, é natural da terra de origens de Marceneiro, o Cadaval, e é o grande impulsionador da "ASSOCIAÇÂO ALFREDO MARCENEIRO", da qual é neste momento o Presidente da Assembleia Gera.
Em 1994, na comemoração do 1º aniversário da SIC, disse e/ou declamei, com fundo musical o poema Janela da Vida. Foi um poema do repertório de Alfredo Marceneiro, mas que infelizmente ele não o pode gravar.
Esta letra da autoria de Carlos Conde, para o repertório de meu avô Alfredo Marceneiro, foi escrita no final dos anos vinte do século passado, foi "CENSURADA", mas acabou por ser cantada "à revelia" tendo criado alguns dissabores ao seu autor o poeta Carlos Conde, quer ao meu avô.
Qualquer semelhança com o panorama actual, é obviamente DESCABIDA!!!, será ?
Vítor Duarte Marceneiro diz:
Janela da Vida
Poema de Carlos Conde
Música do Fado do Cravo de Alfredo Marceneiro
Nota: Os versos abaixo transcritos, diferem do que se gravou, em virtude do poema ser demasiado longo
"JANELA DA VIDA"
Letra de: Carlos Conde
Música: Marcha de Alfredo Marceneiro
Para ver quanta fé perdida
E quanta miséria sem par
Há neste orbe, atroz ruim
Pus-me à janela da vida
E alonguei o meu olhar
P´lo vasto Mundo sem fim.
Pus todo o meu sentimento
Na mágoa que não se aparta
Do que mais nos desconsola;
E assim a cada momento
Vi buçais comendo à farta
E génios pedindo esmola!
Vi muitas vezes a razão
Por muitos posta de rastos
E a mentira em viva chama;
Até por triste irrisão
Vi nulidades nos astros
E vi ciências na lama!...
Vi dar aos ladrões valores
E sentimentos perdidos
Nas que passam por honradas
Vi cinismos vencedores
Muitos heróis esquecidos
E vaidades medalhadas
Vi no torpor mais imundo
Profundas crenças caindo
E maldições ascendendo
Tudo vi neste Mundo
Vi miseráveis subindo
Homens honrados descendem
Esse é rico, e não tem filhos
Que os filhos não dão prazer
A certa gente de bem
Aquele tem duros trilhos
Mas é capaz de morrer
P´los filhinhos que tem
Esta é rica em frases ledas
Diz-se a mais casta donzela
Mas a honra onde ela vai
Aquela não veste sedas
Mas os garotitos dela
São filhos do mesmo pai
Por isso afirmo com siso
Que p´ra na vida ter sorte
Não basta a fé decidida
P´ra ser feliz é preciso
Ser canalha até à morte
Ou não pensar mais na vida
CANTIGAS DE LISBOA
As cantigas que se fazem a Lisboa são declarações apaixonadas de amor. O poeta personifica na Capital a sua Dama e rasga-lhe um sem número de galanteios e piropos.
O poeta o cantor vê sempre na sua cidade amada, a mais colorida do Mundo, e é nesta cor local que joga as suas rimas e estribilhos ...Lisboa Princesa, Lisboa coroada Rainha, Lisboa menina, Lisboa mãe, avó Lisboa, madrinha Lisboa. Lisboa amada, Lisboa dos meus amores, Lisboa do meu coração, etc...
As cantigas de Lisboa têm todo o encanto nas declarações de amor que recebe dos poetas seus enamorados, Lisboa fica vaidosa porque sabe que é bela, não pela opulência mas sim pela sua alegria e graça natural.
È bem Lisboa a mais cantada e a mais amada Cidade do Mundo.
Vítor Duarte Marceneiro
Canta: Bairros de Lisboa
Letra de Carlos Conde e música de Alfredo Marceneiro (Fados Pajem)
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Grande Noite do Fado no Coliseu em 1998
Poema Janela da Vida de Carlos Conde
Escrito nos anos 20 do século passado... quem diria! até hoje é actual
Jornal I - informação Edição fim-de-semana,integra a revista
NÓS Melancólicos Nº 46 -20/21 Março de 2010
Texto de Maria Ramos Silva
Fotos de José Miguel Soares
De avô para neto, a história é de canção. e de família. A viajem pelo ADN Marceneiro é um passeio por gerações que não esquecem o homem do lenço, do boné, do cigarro pendurado na boca com carisma e do discurso castiço. Ti Alfredo pela memória de Vítor Duarte
A plateia do extinto Solar da Hermínia tranca-se num reverente silêncio. O avô canta. O desfecho não traz surpresa. As palmas enchem a sala rendida à voz e à guitarra. A maior novidade do serão é anunciada pela boca do amigo Chico Fadista. "Mas vocês não sabem que existe uma terceira geração, aqui o Vítor também canta," O burburinho volta a perder potência e Vitó puxa dos desconhecidos galões. Ainda com as luzes em baixo, nessa passada artística em que os parentescos sucumbem às críticas sérias, o avô solta o veredicto, orgulhoso mas retorcido. "Pois, não está mau. É pena é andar a cantar a mesma coisa que eu ando a cantar há 30 anos! Arranje repertório."
Ao seu jeito sui generis concede o primeiro elogio ao neto. Outros duetos entre Vítor Duarte e o castiço companheiro do boné e do lenço se seguiriam, com o temperamento do veterano sempre a ser cozinhado em lume alto. "Aconteceu cantarmos os dois e ele interromper a meio. 'Estou cansado, já não me apetece. Esqueci-me dos versos. ‘ Quem começava? Claro, abre o avozinho.
Depois, era só agarrar." Numa actuação em Cascais, já com impressionantes 89 anos, exibe o cabelo negro integral que dispensava truques de pintura e os óculos escuros que se encaixaram na cara depois da operação às cataratas. A idosa voz que dá a deixa não vacila. O corpo hirto, falsamente negligente e distante das atenções, encosta-se à parede. Uma das mãos, escondida nos bolsos, continua a inibir movimentos desnecessários do tronco. Ti Alfredo, que o ofício de Marceneiro acabou por baptizar em pia popular, disfarça entre os restantes cinco dedos um lenço que aproxima discretamente dos cantos da boca. Um pormenor delicioso. "Colava a placa com marmelada, e esta começava a derreter!"
A vida de fadista não abundava em açúcar. A conversa do fado nem sequer vagueava pelos corredores do lar. Não valia fortunas e via a saúde empenhada pelas madrugadas fora. Uma criança lá em casa a cantar? "Nem pensar nisso. O fado, andar na noite, não dá nada", dizia. Mas pelo menos uma das etapas do percurso era canja. Canja com arroz.
A iguaria que lhe confortou o estômago durante 60 anos sempre que chegava a casa vindo da noite, partilhada com os fiéis escudeiros. "Quem o levasse encostava o carro e ia comer uma sopinha com ele. Era uma alegria poderem dizer "fui a casa do Ti Alfredo!" As fotos glamorosas dos anos 50 imortalizaram a imagem de marca: o cigarro High Life a fazer cama entre os lábios. Os posters e a caricatura mais emblemática, assinada por José Pragana, resistem na parede da casa de Vítor, no Sobral de Monte Agraço. Pelas 70 primaveras, por ordem do médico, Alfredo enterra a nicotina de vez. Morcego por sina e por gosto, passa a viver em pleno dos banhos de Lua quando se reforma do estaleiro naval, em 1945. O avozinho já leva mais de meio século nas pernas. O lenço que dá estilo ao pescoço e o boné enfiado são mais do que acessórios de moda pessoal – protegem a garganta e a cabeça que já não vão para novas, mas que continuam a frequentar o barbeiro por baixo do desaparecido Clube Ritz quando já passam das duas da matina. "Veja lá se o sol não lhe vai fazer mal", atirava o neto quando se passeavam às claras. "Sempre usou a mesma roupa de Inverno e de Verão. Mas no Inverno vestia ainda a gabardina. E usava sempre o lenço quando saía de casa. Começou a cantar com o lenço cruzado." A glória e queda de um homem contam-se ao ritmo do taxímetro. Os motoristas de praça são marco importante na sua longevidade e garantia de segurança nas incursões nocturnas. Briosos de carregar o fadista no banco de trás, desunham-se por uma viagem com Marceneiro e enterram o machado de guerra mal avistam a criatura. "Eram homens de bairro que não o deixavam sentir-se sozinho. Um dia na Rua das Taipas, às duas e tal da manhã, um táxi vê que é o Ti Alfredo. Quando pára e pergunta se quer boleia três táxis enfaixam-se uns nos outros. Começa grande discussão até verem que era ele. Ficou tudo bem." Da morada na Rua da Páscoa, em Campo de Ourique, desce à Igreja de Santa Isabel e vem a pé até ao Largo do Rato. Entra no carro e em dois tempos o conhecem, lançando um "boa noite, Ti Alfredo". "Nem punham o contador a marcar. 'Olhe, meu querido, vamos para o Bairro Alto mas vais pela Praça das Flores', pedia ele. Era para que a bandeirada não fosse pequena. Dava--lhes 20 escudos no final, mesmo que a corrida fosse só cinco." Em 1979, a ausência de réplica do condutor confere o receio do mestre. As gerações sucedem-se e com elas a memória perde forças para o anonimato completo. Já ninguém responde ao cumprimento. "Entra num táxi, diz boa noite, e nada. 'Viste? Estou lixado. ‘ Os seus antigos companheiros da noite já não existiam para o segurar." Alfredo só permanece sem sair de casa um ano antes de morrer, quando sente um fraquejar numa perna. Despede-se em Junho de 1982, com 94 anos, idade actualizada pelas buscas do neto que lhe situou o verdadeiro ano do nascimento em 1888. Vítor, que chegou há pouco do Canadá onde actuou para portugueses, recupera estas e outras biografias do fado em lisboanoguiness.blogs.sapo. pt, projecto criado em 2007 com o objectivo de tornar a capital portuguesa recordista do mundo enquanto a mais cantada. "Muitos poemas falam de uma mulher, a mulher Lisboa." Dedica-se ainda à investigação, num trajecto pelas memórias do fado e dos seus intérpretes ao longo dos anos, graças a muito know-how a partir da recordação, recapitulando a vida e obra dos "peões" do fado. "Encontro dados daqui, jornais antigos ali, pessoas que conheceram, etc. Estava lá sem saber que estava a assistir à história." Pouco se fazendo escutar, uma recalcada veia de actor latejou na família. O avô, personagem em tamanho grande já de si, chega a entrar na peça Fado, no Coliseu. Goza ainda de um breve apontamento, agora a cantar, num filme de António Lopes Ribeiro, nos anos 30. "Também acabei por não ser actor. Fiz apenas teatro na escola e na General Motors, mas mais tarde como realizador vivi um pouco esse papel. Há uma extroversão e um gosto." O gosto, agora pelo fado, ganhou força anímica entre a juventude de hoje, mercê de uma cultura linguística mais depurada. "As pessoas nunca deixaram de gostar de ouvir a guitarra, independentemente de gostar ou não de fado. Mas as letras ou não eram ouvidas ou achavam que era a história da desgraçadinha, quando esse não é o fado do Marceneiro." Só pelos 23 anos o próprio Viro, seguidor da pop dos Shadows e dos Beatles, se deixou embalar pela canção, vencendo os preconceitos próprios da idade. "Até então era altamente contestatário. Ele discutia comigo. 'Este neto falta ao respeito ao avô! ‘ Também o picava. 'Brevemente vou ser engenheiro de máquinas', dizia-lhe eu. E ele respondia: 'Você que anda lá a estudar para engenheiro diga-me lá o que quer dizer boninas?"
"Sete colinas são teu colo de cetim Onde as casas são boninas espalhadas em jardim" (Lisboa Casta Princesa, Álvaro Leal/Raul Ferrão)
Vítor lá engolia os espinhos das flores. Com 12,13 anos, poemas como os de Henrique Rego, mais tarde classificados como "fabulosos", desatinavam a sua consciência revolucionária. "Vinha de um bairro operário em Alcântara. 'Bailar à mercê? Nunca vou bailar à mercê de ninguém! Disse logo. Foi uma grande luta e tanto que tenho bailado." Filho de uma costureira que morreu jovem, aos 25 anos, e do "fadista bailarino" Alfredo Duarte Júnior, antigo pintor de automóveis da General Motors, onde também vem a trabalhar, mandava em homens com idade para serem seus pais. Quando já se encontra na Fiat, o então gerente oficial conhece dois responsáveis pelo Hotel Eduardo VIL Pela amizade vêm a saber que é neto de Alfredo. Com 21 anos, começa então a desatar a voz para o fado, com carregada herança nas costas. "Passei a ir para o Galito, em Cascais, onde estava o Zé Inácio (*), que fora porteiro da Adega Machado, o Carlos Zel, etc. Não tinha aspecto mas tinha palheta. Nunca tinha tentado cantar e sentia o peso, o que o meu pai passara por ser filho do Marceneiro. Entrava no Bairro Alto e todos o conheciam. Lá cantei um fado sem saber que cantava." Depois da tropa gravou sozinho e com o avô. Trabalhou em laboratório de fotografia e realizou publicidade. Em 1979 produziu o filme que reuniu as três gerações de fado da família. Foi casado 27 anos com uma prima em segundo grau, com quem teve um filho, que a morte cedo levou. Da actual relação nasceram dois meninos, uma tardia quarta geração que vive o apelido com entusiasmo, entre sete bisnetos do mestre, "Tenho um jeito Marceneiro mas não sou o meu avô. Quem diz que o imito é cretino, porque é impossível imitá-lo. Agora, tenho o ADN do meu avô, é óbvio. Fecho os olhos e sei que ali o meu avô dava aquela voltinha." Vítor, com 64 anos, recorda com saudade a cultura peculiar do avó, de quem escreveu a biografia. Aquele saber à margem dos livros que se fecharam na quarta classe, de quem falava e escrevia com tento pontuado com a sua devida asneira, sem beliscar a língua e insistindo nos acentos tónicos, desafiando a fleuma dos interlocutores durante as entrevistas. Era preciso saber levar e saber escutar. O fadista não gostava de respostas sincopadas. E zelava por algum purismo. "Não sendo um homem retrógrado, no fim até era bastante progressista, nalgumas coisas era retrógrado como eu sou. Se me perguntarem hoje se o fado evoluiu, é claro que evoluiu, mas há uma evolução que vai até um determinado ponto e produção, que eu contesto. Por exemplo, quanto mais simples for tocado o célebre fado menor, à antiga, mais valor tem."
Do Bairro Alto até à Márcia Condessa, na Praça da Alegria, os argumentos ferviam entre gerações. Discutiam de tudo. "Tinha mais a ver com o meu avô do que com o meu pai. Fui criado com ele. Ensinou-me para nunca andar com nenhuma mulher do fado. Era lowprofile. Aliás, a ele nunca lhe conheceram namorada." Nem grande moléstia provocada pelo crivo da censura, ainda que as letras previamente aprovadas tivessem que andar num livrinho debaixo do braço quando ia actuar. Alfredo levava Vítor à revista e ao fabuloso circo no Coliseu, onde engrossavam a chamada claque. A vida não era fácil e com estes bilhetes dados bastava a obrigação de arrancar com as palmas. "A sua própria forma de estar no fado levou a que nunca se conseguisse fixar muito numa casa, daí que mais tarde diziam que andava às esmolas. Não era. Havia era muita gente que para o ouvir o gratificava.” Alfredo só não podia ouvir falar em grandes deslocações. "Nunca quis ir para fora de Lisboa, muito menos para fora de Portugal." Inventava histórias e mais histórias para não arredar pé. Em 1976 desafiaram-no para uma ida ao Coliseu do Porto – Ofereciam alto cache e punham Mercedes e alojamento à disposição. "Às tantas pergunta-me quantas pessoas leva o Coliseu. 'Umas mil, Ti Alfredo.' Chamou-me aparte. 'Já viste? 200 contos, mais despesas, mesmo que os gajos queiram dar 50 gansos [escudos] para ver a minha tromba multiplica. É tanga! Depois não nos pagam.' Mil e um pretextos arranjados – Arranjadinhos como a merenda que levava consigo: uma carcaça com pastelinhos de bacalhau. Chegavam a ser dez, os comensais espontâneos que disputavam um bocadinho, só pelo prazer de provar a especialidade da mulher, a tia Judite, por quem se enamorou certo dia num baile na Fonte Santa.
(*) Na realidade José Inácio, que era um extraordinário Viola de acompanhamento de Fado, no Galito, tocava guitarra, e à viola estava o "Pirolito da Ericeira" este sim, tinha sido porteiro na Adega Machado, este lapso, a que jornalista é alheia, é da minha responsabilidade pois com o entusiasmo de falar destes acontecimentos poderei tê-la induzido em erro.
Considero esta entrevista, na óptica do trabalho da jornalista, muito bem feita e de um rigor exemplar. Permitam-me destacar que, Maria Ramos Silva, no decorrer da entrevista me ia fazendo perguntas/reparos muito objectivos às minhas explicações, tendo eu feito uma observação elogiosa aos seus conhecimentos de "Marceneiro" e do Fado, respondeu-me: — Vítor, para além de outras fontes, eu sou visitante assídua dos seu blogue. Fiquei muito "orgulhoso".
QUE O FADO PERTENCE Á HISTÓRIA,
JÀ NÃO PODE SER NEGADO
O MARCENEIRO É A GlÓRIA
MAIS DIGNIFICANTE DO FADO
HOJE FORAM ACTUALIZADAS VÁRIAS PÁGINAS DO BLOG
"ALFREDO MARCENEIRO é só fado..."
um Blog sobre a vida e obra de meu avô, Alfredo Marceneiro, tal como já o fiz em livros e video.
Espero a vossa vista e que seja do vosso agrado, todos os comentários e sugestões são sempre bem recebidos.
http://alfredomarceneiro.no.sapo.pt/
http://alfredomarceneiro.blogs.sapo.pt/
Sobre este tema, tenho montado um espectáculo/conferência, em que com a colaboração de outros fadistas, e com a ajuda de um diaporama projectado em video, se oferece um espectáculo com dignidade, e em que o Fado acontece, em moldes inéditos, espectáculo este, que tem merecido o agrado das entidades e organizações que nos têm contratado.
Para mais informações: fado.em.movimento@sapo.pt
Telefone
200.000
Visitantes
Faz ano e meio que iniciei esta cruzada, hoje atinge os 200.000 visitantes, e será que LISBOA irá para o Guiness?
O essencial foi conseguido, ou seja grande parte do que me propus fazer para que Lisboa se candidatasse ao Guiness Book of Records, como a Cidade mais Cantada do Mundo, está feito, o mais simples agora era iniciar o processo de candidatura, mas nada avança. Porque será?
A ver vamos.
Viva Lisboa
Viva os Poetas
Viva o Fado
Viva a Poesia
Grande Noite do Fado próximo sábado dia 14 |
Cadaval homenageia Alfredo Marceneiro Participação dos nossos associados (APAF) FRANCISCO PINTÉUS (apresentação) e VÍTOR DUARTE MARCENEIRO que apresentará o seu diaporama sobre o avô e interpretará castiços fados. O Clube Atlético do Cadaval irá acolher, no próximo dia 14 de Junho, pelas 22h00, com o apoio da Câmara Municipal do Cadaval, uma Grande Noite de Fado, numa iniciativa que pretende constituir uma homenagem a Alfredo Marceneiro, incontornável figura do fado, de origens cadavalenses. A apresentação deste espectáculo, consagrado a uma das mais ilustres figuras do fado, Este tributo ao ícone do fado que celebrizou “A Casa da Mariquinhas” contará com a participação especial de Rodrigo e de outros fadistas convidados, cujo acompanhamento ficará a cargo de Luís Ribeiro, à guitarra portuguesa, e de A iniciativa contará, também, com a especial participação de Ruy de Matos, encenador reformado do teatro nacional, que, para além de assegurar a cenografia do espectáculo, proporcionará declamação de poesia alusiva ao Fado. O espectáculo, que sucede 26 anos após o desaparecimento de Alfredo Marceneiro, decorrerá na vila do Cadaval, mais propriamente no Pavilhão Augusto Simões, junto ao Campo de Jogos Municipal. |
NOTÍCIA DA LUSA
Lisboa, 10 Jun (Lusa) - O fadista e compositor de fado Alfredo Marceneiro é tema de uma noite de fados, no próximo sábado, no Cadaval, terra dos seus pais, numa iniciativa da associação em formação que ostentará o seu nome. "Filho de cadavalenses, é intenção de um grupo de apreciadores de fado desta região constituir uma associação que valorize activamente a obra do grande criador que foi Alfredo Marceneiro", disse à Lusa Francisco Pintéus, da comissão instaladora da Associação Alfredo Marceneiro (AAM). "Outro objectivo da associação é distinguir anual ou bi-anualmente um disco de fado ou uma criação fadista com o Prémio Alfredo Marceneiro, a exemplo do que acontece com os prémios José Afonso e Carlos Paredes, respectivamente na Amadora e Vila Franca de Xira", acrescentou. Para Pintéus, “figura maior do fado, Alfredo Marceneiro nem sempre tem tido o destaque que merece”. A AAM "tem ainda como objectivo constituir um acervo documental sobre o fadista, bem como um núcleo musológico, estando activamente a trabalhar com familiares seus", acrescentou. A noite de fados de sábado decorrerá no Pavilhão Augusto Simões, sendo a primeira parte preenchida pela exibição de um diaporama sobre a vida e obra do criador de "A casa da Mariquinhas", de autoria do seu neto Vítor Duarte Marceneiro, distinguido este ano com o Prémio Amália Rodrigues de Ensaio e Divulgação.
Autor de dois livros sobre Alfredo Marceneiro, uma biografia de Hermínia Silva e do blog - http://lisboanoguiness.blogs.sapo.pt -, Vítor Duarte Marceneiro interpretará, no espectáculo do Cadaval, fados celebrizados pelo seu avô. Participam ainda na noite de fados João Paulo, Miraldina, Luísa Soares e Manuel Domingos (Prémio Amália Fado Amador 2006), entre outros, sendo acompanhados por Luís Ribeiro, à guitarra portuguesa, e Jaime Martins, à viola. Alfredo Marceneiro faleceu há 26 anos, em Lisboa, cidade onde nasceu, mas segundo o seu neto e biógrafo "foi gerado no Cadaval". Alfredo Marceneiro é autor de dezenas de composições de fados, entre elas, "fado cravo" e "fado versículo". As suas músicas continuam hoje a ser cantadas com novos poemas, como sucedeu no novo álbum de Camané, intitulado “Sempre de mim”. Entre os seus êxitos cite-se, "A Lucinda camareira" (Henrique Rêgo/A. Marceneiro), "A casa da Mariquinhas" (Silva Tavares/A. Marceneiro), "Conceito" (Carlos Conde/A. Marceneiro), "Ser fadista" (Armando Neves/A: Marceneiro), ou "Cabelo branco" (H. Rego/A. Marceneiro). Alfredo Marceneiro teve uma longa carreira, que abrangeu praticamente todo o século XX, tendo-se distinguido como estilista [forma de variar dentro da mesma linha melódica] e compositor. Cantou dos bailes de bairro, nos cafés de camareiras e retiros até às casas de fado. Deixou numerosos discos, de que se destaca "The fabulous Marceneiro", mas escassos registos televisivos.
NL. Lusa